Maria Amélia Mano
A Saina e Abou
Manhã do segundo domingo de maio. Leio as notícias desse
mundo espantado. Uma adolescente de 19 anos passa pela fronteira do Marrocos
com a Espanha. Carrega uma mala de rodinhas e, pelo nervosismo, é surpreendida
pelos guardas. Ao abrirem a mala, um menino pequeno, negro, magro e de olhos
assustados se desvencilha das roupas que o envolvem e, confuso, diz: "Meu
nome é Abou". Abou é da Costa do Marfim e tem 8 anos.
Os jornais
falam: “um africano”, “um subsaariano”, mala com conteúdo de “formas humanas”
que, agora, tem um “destino ainda incerto”. Do outro lado, em um aeroporto, um
homem também “de traços subsaarianos” é interrogado. Os agentes lhe pedem
documentos. É da Costa do Marfim. Perguntam a ele, para onde vai, se tem
família, filhos... E mostram a foto, feita uma hora antes, de Abou dentro da
mala. Perguntam: “Este menino é seu filho?”
O homem forte
que atravessou a fronteira em um bote, fraquejou, se desmanchou ali mesmo.
Disse “sim” e calou com uma lágrima nos olhos. Estava certo de que o filho
tinha passado. Queria trazê-lo para perto, como talvez quisesse fazer com outro
filho e a esposa. Todos do outro lado do mar. Foi preso por tráfico de pessoas
junto com a moça. Abou está bem de saúde e sob cuidado de autoridades. Penso na
mãe e no irmãozinho de Abou. Faltavam menos de 20 quilômetros para cruzar a
fronteira.
Tarde de
domingo e saio para o parque. Um espetáculo de pequenos bonecos inspirados em
pessoas reais. Histórias curtas, verdadeiras, de encontros entre a artista,
Genifer, e gentes que foi conhecendo pela estrada, de mochila, em pequenas
cidades do interior, entre a Bahia e o Rio Grande do Sul. Sonho meu de trilhar
esses caminhos escondidos e profundos em singelas e pequenas porteiras,
janelas, quintais e jardins. Palco de vidas reais que viram histórias para
crianças e para adultos. Encanto e me encanto.
Mas é dia
feio. Ameaça de chuva. Pouca gente. Genifer começa a apresentação para mim e
uma menininha com um balão de gás gigante de Minie. A menininha pouco se
interessa pela pequena personagem: a menina Marina. A Minie gigante voadora lhe
toma mais atenção. Mas presto atenção na história de uma menina do interior do
Rio Grande do Sul, Marina, que é como semente de dente de leão, voa ao sopro de
mão em mão. A cada sopro, um desejo, um voo, uma cambalhota da menina Marina, representada
por uma bonequinha do tamanho do dedo mindinho.
Em seguida,
uma família com uma criança pequena, de colo. Genifer repete a história da
menina Marina. Conta mais uma. A família sai com a ameaça da chuva e quando
pensamos que nada mais teria, chega um grupo grande de pais e crianças. Genifer
recomeça. Sou a única que permanece desde o início. Ouço pela terceira vez a
revoada de desejos da menina Marina sem cansar, que nem criança que pede para a
mãe repetir a história preferida. E segue contando histórias até o fim do show.
Mostra as fotos das pessoas. Pessoas reais. Nomes reais. Lugares reais.
Lembro de
tantas pequenas histórias que presenciei e que davam um espetáculo. A velhinha
que me assegura que os marimbondos refazem os “quebrados” da casa, desde os
vidros das janelas até o bordado que se desfaz em linhas. Marimbondo reconstrói
com barro e arte. O senhor que entra
comigo em um centro comunitário e eu, sentindo cheiro lindo de erva fresca,
comento: “que cheiro de alecrim!”. E ele me responde, rindo, “sou eu pensando”.
E Saina, a menina brasileira, filha de haitianos que viajou 12 horas de ônibus,
sem chorar. A mãe, negra, abrindo sempre lindo sorriso. E Abou...
Pergunto a
Genifer se ela faz histórias só de quem conhece, de personagens próximos ou de
personagens distantes, histórias que não foram contadas a ela, pessoalmente, mas
que são públicas. Ela me responde que não. Faz histórias de pessoas que
convive, conversa, “olho a olho”. E, com alguma ansiedade de desabafo, conto a
história de Abou. Acho que conto, na
tentativa de que ela faça um pequeno boneco negro de olhos grandes, assustado,
dentro de uma malinha, atravessando o mar, querendo encontrar o pai. Acho que
queria que ela criasse um final feliz para Abou e seu pai, no dia das mães.
E anoitece.
Domingo. Escrevo e trabalho um pouco. Pensando nas pesquisas, nas entrevistas e
na necessidade ética de se preservar nomes. Manter o anonimato. Mas me volta o
menino e a primeira reação que teve ao ser descoberto: "Meu nome é
Abou". Lembro dos personagens de Genifer que ela faz questão de manter os
nomes reais. E penso que o que as pessoas realmente querem é que as conheçam
pelo nome. Não querem ser um africano, uma filha de imigrantes africanos, uma
menina do interior do Rio Grande do Sul. Querem ser o que são: Abou, Saina e
Marina.
O domingo chega
quase ao fim e ainda penso na história que ouvi três vezes. No sonho da minha
insônia, a menina Marina voa como dente de leão, de mão em mão, atravessando os
ventos e oceanos, fronteiras. Resgata o pequeno Abou e seu pai, a mãe e o
irmão. Saem voando, acariciados por mãos
e terras que façam sorrir a todos como fazem sorrir a mãe de Saina. Terras que
os chamem pelos nomes. Terras que os façam sentir pessoas de verdade, com
histórias de verdade. Terras que, em um domingo de maio, abraçariam todos os que
desejam fugir das tristezas. Todos os pequenos que são grandes no desejo de voar
e sonhar com um colo de mãe e de terra, de lar.
[Maria Amélia Mano escreve no Rua Balsa das 10 às segundas-feiras]
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