Texto-desabafo de uma discussão sobre a visão do especialista sobre o profissional na APS e a influência desta visão na escolha jovem médico (que por pressão dos colegas, professores e outros profissionais fica em dúvida em relação a escolha), acabei escrevendo a seguinte resposta (transformada em carta).
Para Marcela
Caro estudante de medicina/jovem médico,
Acho que dividir histórias ajudam a nos entendermos e entender
o próximo. Passei por um processo de aceitação quando no terceiro ano da
faculdade desconstrui muitas das visões romantizadas da medicina e bati o pé
que queria fazer medicina de família e comunidade, e hoje além de fazer
medicina de família e comunidade ainda bato o pé que quero ir trabalhar na zona
rural. Desde então foram desde professores que se negaram a dar uma explicação
porque eu escolhi ser médica de família, até escolherem os pacientes humildes para
eu tratar porque é "medicina de pobre". Penso que consegui aprender muito e fazer grandes trocas tentando
trabalhar a competência cultural e minha própria bagagem nas consultas.
Hoje e a cada dia o que eu mais tenho certeza é que não
quero fazer uma outra especialização. Fragmentar, dissecar e clinicar sem ver
os determinantes de saúde e sociais, medicar sem entender contexto, usar meias
e minhas verdades como generalizações e aprendo a enxergar essas diferenças com
a medicina de família diariamente, mesmo ainda sendo estudante (sim, entendo a
importância do especialista, mas não entendo porque ao escolher medicina de família e comunidade tenho que ouvir sermões sobre maus encaminhamentos, sobre médicos ruins no PSF, sobre minha escolha ser equivocada e que vou "ganhar pouco dinheiro"). Eu me questiono muito como muitas vezes o médico
que tanto crítica a especialidade (currículo oculto ou preconceito velado) não consegue despir-se das roupas velhas
(sim, precisamos todos rejuvenescer, já dizia Belchior).
Nunca a medicina foi tão capaz de resolver coisas e tão
incapaz de alcançar as pessoas. Nunca fomos tão criticados. E nunca fomos tão
incapazes de ouvir (em tempos de comentários e jocozidades sobre "febre
interna", "espinhela caida" e "peleumonia"). Essa
pragmatismo e contrastes encontram uma forma de aproximar as distâncias na
medicina de família, no método centrado na pessoa, na chance de emponderar um sujeito e coordenar o cuidado.
Em nosso mundo que cada vez fica maior, mas mais
interdependente o paradigma, hoje, de saúde-doença mudou, as doenças crônicas
superam as doenças infecciosas e a causas dessas doenças estão fora do
"setor saúde" e são profundamente moldadas pelos produtos e práticas
das indústrias de alimentos, bebidas, tabaco, álcool e marketing.
E na prática do médico generalista é possível encontrar uma
forma de resistência e não é uma resistência sozinha (médico para médico,
profissional para profissional) mas no sujeito que está a sua frente.
E não só na perspectiva brasileira, mas quando paramos para
pensar que a diferença de expectativa de vida dos países
"desenvolvidos" e em "desenvolvimento" é de 40 anos,
precisamos refletir sobre o papel da atenção primária nesses contextos, nessa
revolução - mesmo que muitas vezes discreta. E voltar-se para essa atenção
primária é também voltar-se para a direção de um cuidado mais integrado,
compreensivo e centrado na pessoa/comunidade.
O trabalho é árduo e demanda muito, em uma mesma sala de
espera você pode encontrar um pouco de tudo das mais "difíceis" e
raras doenças que um médico deve "estar preparado para lidar" com o
bônus de conhecer as pessoas, a comunidade, e no seu diagnóstico poder incluir
as causas e determinantes destes problemas de saúde. Do contrário do ambiente
hospitalar, a negociação e a conversa terão que ser muito mais aprofundadas,
muito mais desafiadas porque o paciente entrará pelo teu consultório "dono
de si" e perguntará, opinará e muitas vezes não irá "seguir o que
dizes" isso vem de encontro com novas habilidades e caminhos que temos que
desenvolver constantemente. Além disso, você "nunca verá", quando der certo o
papel de evitar que um infarto aconteça, que uma diabetes se desenvolva, o paciente que não chegará a emergência, de
poder segurar até o fim na mão do paciente são muito mais marcantes e intensos.
O especialista tem que existir e tem o seu papel (isto não é uma batalha/luta, é cuidado coordenado e temos que trabalhar juntos!), mas sempre devem ter os médicos que conhecem os seus pacientes bem o suficiente para gerenciar realmente a totalidade da saúde em todas as suas múltiplas dimensões, incluindo as necessidades mentais e espirituais.
O especialista tem que existir e tem o seu papel (isto não é uma batalha/luta, é cuidado coordenado e temos que trabalhar juntos!), mas sempre devem ter os médicos que conhecem os seus pacientes bem o suficiente para gerenciar realmente a totalidade da saúde em todas as suas múltiplas dimensões, incluindo as necessidades mentais e espirituais.
Acho que esses são alguns dos sonhos, utopias e realidades.
Espero que possamos ser colegas de residência.
Abraços que pousam,
Mayara Floss
Adorei seu texto. Parabéns pelo post.
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