1
Às
13h30min. João, Agente Comunitário da Rua das Palmeiras, chegou à casa de Dona
Heloína. Ela estava sentada na frente da porta da sala, embaixo de um pé de
manga frondoso.
João
sentou ao seu lado, puxou conversar sobre o calor, Dona Heroína ofereceu água,
ele bebeu, perguntou da família, contou que sua filha mais nova estava com
gripe, que ainda esse mês nasceria sua menina mais nova. Depois convidou Dona
Heloína para dançar a quadrilha Junina que estavam organizando na Unidade de
Saúde.
Ela
disse que ia pensar, que andava com umas dores nas pernas que estavam lhe
matando, mas iria pensar.
Antes
de ir embora, perguntou das medicações, se ela estava tomando todo dia o
captopril, de manhã e de noite? Dona Heloína disse que não, que lhe dava muita
tosse, que só tomada quando sentia que a pressão estava alta.
— E
como é que a senhora sente isso, mulher?
disse ele.
— Pode trazer as medicações
para eu ver? Completou João.
Dona
Heloína entrou em casa para procurar as medicações, João foi atrás. Viu,
conferiu, constatou que ela pouco tomava das medicações. Perguntou:
— Pode ir amanhã, 10 horas, falar com a enfermeira?
— Precisa mesmo?
perguntou ela desconfiada.
— Precisa. Posso deixar agendado?
— Pode!
respondeu decidida.
João
foi embora, prometendo encontra-la no dia seguinte.
2
— Tem jeito de uma mulher aguentar dá toda noite?
perguntou Marinalda, muito
séria.
— Bem...
tentou responder a enfermeira, mas logo foi cartada pela mulher que
começava a chorar.
— Eu
não aguento mais. Com esse home é toda noite.
Marinalva
abaixou a cabeça e chorou abertamente, deixando a enfermeira sem saber o que
fazer, o que dizer: “tem jeito de uma mulher aguentar dá toda noite?”.
O
que dizer para consolar essa mulher? Pensava a enfermeira, porém, mesmo não
sabendo o que dizer, sabia que alguma coisa teria que fazer. Na dúvida,
enquanto pensava, deixou a mulher chorar francamente pelo tempo que precisava.
Talvez fosse também esse o tempo que precisaria para encontrar uma resposta.
3
Maria
entrou no consultório dizendo que não conseguia dormir.
— Quero um remédio para dormir, não vim aqui por outro motivo, que nem gosto de
médico.
O
residente, que atendia como clínico geral, passava o dia dando receitas de
dipirona e diclofenaco sódico, não viu motivo para discutir. Puxou um
receituário azul e prescreveu.
4
Marluci
entrou no consultório, puxou a cadeira, sentou, chorou de cabeça baixa, mas sem
vergonha.
— O
que aconteceu, mulher?
disse o enfermeiro, saindo de traz de sua mesa e, sem
perceber, abraçou também sem vergonha, a usuário já conhecida.
— Você sabe que o meu marido não é pai de meus dois meninos mais velhos, não sabe?
— Sei.
-
Agora ele não quer deixar os meninos comer. Diz que quem compra a comida é ele
e que não tem que alimentar filhos de outro homem.
O
enfermeiro, que acreditava já ter visto de tudo, instintivamente escorou-se na
parede. Parecia, contou depois, que tinha levado um soco na cara. Como pode,
pensou ele, ver uma pessoa quase toda semana e desconhecer o que aflige seu
coração?
Deu
a volta na mesa, sentou, enquanto Marluci continuava chorando.
— Hoje meus meninos só comeram na escola. Nem o café da manhã ele deixou eu dar.
— Marluci, você não recebe pensão do pai de seus filhos mais velhos?
— Não. Disse ela e desabou no choro novamente.
— Por
que não recebe pensão?
— Não sei, nunca fui atrás disso. Disse sem levantar o rosto.
— E
não tem como ir para outra casa com seus filhos?
— Já
pensei nisso, mas não sei para onde ir.
— O
seu marido ainda trabalha com o Pastor Deoclécio?
— Trabalha.
— Espera um pouquinho aqui, volto já.
disse o enfermeiro, saindo de trás da mesa.
Do
lado de fora, viu um sol lindo, banhando todo o vão livre do Centro de Saúde.
Respirou fundo, teve a impressão que a visão se escurecia. Finalmente gritou
para um Agente de Saúde que passava.
— Cristino, vá até a igreja do Pastor Deoclécio. Veja se ele tá lá e se pode falar
comigo agora, é muito urgênte.
5
A
auxiliar administrativa saiu da frente do computador com os pedidos de exames
da gestante e foi logo explicando:
— Esse a senhora vai fazer aqui. Com esse potinho colhe o xixi e esse o coco. O
sangue tira amanhã cedo, mas venha em jejum.
Pegou
outra solicitação, com uma ficha diferente e disse:
— Esse o SUS não paga, tem que ser particular.
6
Dona
Dália chegou na Unidade de Saúde faltando poucos minutos para fechar. A pressão
estava em 160x90. O estagiário de enfermagem que lhe atendeu perguntou o que
estava sentindo, mas antes que Dona Dália Pudesse responder, a filha disse:
— Eu
estava no trabalho e ela me ligou dizendo que estava passando mal. Agora, veja
só, tem quase 90 anos e quer viver sozinha. Os filhos não têm tempo de acudir
toda hora.
— Mas o que a senhora está sentindo, Dona Dália? Insistiu o estagiário, olhando
para senhora, que parecia conter as lágrimas.
— Eu
me sinto muito só. Minhas filhas não têm tempo para ficar comigo.
— Tá
vendo! A filha alterou a voz irritada, mas antes que pudesse continuar foi
interrompida pela enfermeira, que até então assistia o atendimento do
estagiário.
— Melhor encaminhar para o médico passar uma medicação para baixar a pressão.
7
O
velório de Pai Agenor reuniu grande parte da comunidade quilombola. Era uma
liderança importante, sempre convidado para ser candidato a vereador, sempre
disse não.
— Não quero ficar rico à custa do suor de meu povo.
Liderança
das antigas na comunidade, muito respeitado, benzedor de mão cheia. Gente
famosa lhe pedia a benção e certamente estariam no velório do morto. Sabendo
disso, até o prefeito passou a noite do lado do caixão, recebia pessoalmente as
autoridades do estado, os artistas que vieram se despedir. Pelo sim, pelo não,
a secretaria de saúde pediu para o médico, a enfermeira e uma ambulância,
ficarem de plantão no velório.
Lá
pelas tantas começaram as rezas, as danças de despedida. A enfermeira e o
médico, de caras emburradas, sem poder ir para casa no horário de sempre,
ficaram sozinhos no canto, sem importância. Até que uma menina, que se dizia
curada por Pai Agenor, entrou em transe no terreiro.
O
médico alarmado, sem entender o que se passava, correu socorrer a moça que
deitada no chão se debatia.
— Isso não é transe, é histeria, gritava ele, para espanto geral.
8
Na
porta da Unidade de Terapia Intensiva, reuniram-se os parentes preocupado com o
estado de saúde de Seu Claudio, infartado há 3 dias e em coma.
— As
chances dele se recuperar são muito pequenas. Disse o médico cercado pela
numerosa família.
Mário,
filho mais novo, que acabara de chegar do Mato Grosso e não esperava uma
notícia tão severa, desesperou-se. Chorava compulsivamente.
— Vou dar um calmante, disse o médico, com a caneta na mão.
A
enfermeira correu preparar a seringa, ao ouvir a intenção do médico.
No
entanto, muito calma, a mãe do rapaz, séria, disse:
— Qual o motivo do calmante, um filho não pode chorar a perda de um pai?
9
Seu
José ouviu da moça do caixa que haveria uma reunião com o pessoal da Estratégia
Saúde da Família, duas horas na quarta-feira, na garagem do mercadinho.
Avisou
sua esposa, diagnosticada com hipertensão há um mês, mas que não estava se
dando bem com a medicação que o médico passou.
— Pro inferno essa gente e a conversa mole deles.
No
dia da reunião Seu José chegou atrasado, tentando convencer a esposa a ir, mas
ela não quis de jeito nenhuma. Então ele foi, apesar de não ter problema com
sua pressão.
As
poucas cadeiras já estavam ocupadas, então ficou em pé, na entrada, encostado
na parede. Quando o enfermeiro perguntou, lhe apontando: por que o senhor veio
na reunião, levou um susto, foi lá só para ouvir, não para falar.
— Minha mulher tem hipertensão, mas não quis vir, então eu vim pra aprender a
cuidar dela.
10
Dona
Camila nem precisou bater, a porta estava aberta. Sentou na cadeira em frente à
enfermeira, que na hora preenchia umas fichas.
— Como vai? Anunciou-se.
— Tou bem, e a senhora?
— Assim assim. Disse Dona Camila movendo a mão de um lado para o outro no ar.
— Tá
precisando de alguma coisa?
— Nada, eu vim no supermercado e resolvi passar, saber como tá sua mãe. Ela
melhorou?
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