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22 março 2024

O DIREITO SAGRADO DO HOMEM DE BEM

 

Imagem capturada na internet.

Na cabeça de uma parte (bem grande de homens), talvez até de todo bolsonarista, como o Robinho, ex-jogador de futebol, bolsonarista e estuprador condenado na Itália há 9 anos de prisão por agressão sexual coletiva, o estupro é um direito do homem de bem e sempre culpa da vítima, sempre culpa da mulher, pelos seguintes motivos:

Primeiro, por ser mulher.

Segundo, por ser estuprável, o que quer dizer bonita, gostosa, como diria um ex-presidente inelegível e atual candidato a uma vaga permanente na Papuda.

Terceiro, por provocar. Todo homem (deste tipo) sabe que as mulheres provocam. Provocam quando estão de roupas curtas, porque é óbvio que saem de casa com a intenção de serem estupradas. Provocam quando estão de roupas longas, porque sabem que o candidato a estuprador vai ficar curioso sobre o que ela tem por baixo da roupa longa. Provocam quando saem tarde de casa, porque todo homem sabe que sai tarde de casa, e piora se beber, está pedindo para ser estuprada. Provocam quando saem cedo de casa, digamos, umas sete da manhã para ir trabalhar, afinal de contas elas sabem que não existe horário seguro para uma mulher sair de casa desacompanhada de um homem.

Quarto, porque é vontade de Deus que a mulher seja estuprada. Afinal de contas, se nem uma folha cai de uma árvore sem a vontade dele, como dizem os fiéis leitores da Bíblia, se Deus fosse contra o estupro, não a teria feito nascer mulher, não é verdade?

 

Ernande Valentim do Prado é anticorrupto, antejeitinho, 

porém é ainda mais antifascista, antimachão e antimilico 

e publica no Rua Balsa das 10 sempre que sobra um tempo.

10 novembro 2023

ABAIXO DA SUPERFÍCIE

 

O piso.



Tudo bem

Pode chamar o próximo

Não precisa pensar em mim

Ou talvez

Talvez só hoje você possa fazer algo que nem sempre se permite

Levantar os olhos

Olhar a sua frente e me ver aqui

Este sou eu

Alguém pedindo sua atenção

Mas se não puder

Nem hoje

Nem agora

Olhar só um pouco abaixo da superfície

Tudo bem

Pode chamar o próximo

Não precisa pensar em mim


Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro, 

doutorando em saúde pública e pai de Heloisa, Beatriz e Alice 

e escreve para o Rua Balsa das 10 às Sextas-feiras.


03 novembro 2023

NADA É INSUPORTÁVEL


 Imagem colhida na intenet.



Um amigo disse

numa tarde sem céu

 

O insuportável no ser humano

é que nada é insuportável

para o ser humano

 

Vive-se com o medo

Suporta-se a fome

Acostuma-se com o frio

 

Um dia após o outro

Continua vivendo

Nutrindo o que espera por vir

 

Com os olhos fechados

(mas com muita fé)

Até não nutrir mais nada

 

É capaz de comer o que tira de uma lixeira

Hospedada no mármore das portas do céu

(Eu pensei)

 

Nada é insuportável

Para o ser humano

nada

 

Abortado por outro ser humano

(Talvez não tão humano)

Talvez…

 

Que tem muito

Que tem sobrando

que “tem mais do que precisa ter”

 

Um ano depois

Fábio encharcou o pulmão

com monóxido de carbono

Na garagem de casa

 

Sem dizer nada

Sem se lamentar

Sem pedir licença

 

(só mais um)

Entre todos

 

Nada é insuportável

Para o ser humano

nada


Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro, 
escreve para o Rua Balsa das 10 às sextas-feiras.

27 outubro 2023

A TORRE DA IGREJA

 

Igreja matriz de Catolé do Rocha



De todos os lugares

De onde se pode olhar

 

No sertão mais verde da Paraíba

Da terra pisada por Chico Cesar

 

Miro lá longe

Ouvindo forró de plástico

 

Lá está

Reluzindo ao sol

 

Com seus cacos de vidro

Misturados ao cimento

 

Se impondo à paisagem mundana

 

A sensação é tão forte

Que até esqueço

 

Que da caixa de som

Só forró de plástico se espalha

 

Entre um copo e outro

Eu penso

 

Será mesmo

Meu Deus

 

Que santo de casa

Não obra milagres?

11 fevereiro 2022

Vivendo e não aprendendo


Estes dias fui jogar o lixo. Coloquei a minha mascara N95, saí escondido, depois de olhar pela janela e não ver ninguém por perto. Fui rapidinho e voltei em menos de 40 segundos. Voltando, dei de cara com o filho da vizinha, de uns 12 anos e sem máscara. Nem ele, nem o irmão, de uns 4 anos, nem o pai, nem a mãe e nem a avó, usam mascaras ou melhor, devem usar quando são obrigados para entrar em algum lugar que proíbe entrar sem a máscara.

Poucos dias antes eu escutei a mãe gritando, para o prédio todo ouvir (ou ao menos o andar) que vacinar criança só pode ser safadeza, que não existe criança com Covid (hoje de manhã ela admitiu que uma criança morreu de Covid, uma, apenas uma – queria saber de onde ela tira esses números e essa convicção).

As informações dela são besteiras sem tamanho, que deve ouvir de um idiota e repte como papagaio. Também deve ouvir dos seguidores mais idiotas do que o idiota mor. O idiota mor é o Presidente general, quer dizer, o presidente capitão que prometeu matar mais de 30 mil e já matou quase 700 mil pessoas com seu discurso assassino, atrasando a compra de vacina e fazendo tudo que pode para evitar o isolamento social.

Até aí tudo bem, afinal de contas, não é fácil ter a cabeça no lugar e pensar por si mesmo. Sei que é bem mais fácil acreditar em um mito, seguir um líder, um pastor, um Deus qualquer, até porque, caso tudo dê errado, ainda se pode jogar a responsabilidade nas costas dos líderes e se fazer de vítima, de coitadinho (e eu não sei se odeio mais o porco ou o dono do chiqueiro, não sei mesmo). O que sei, no momento, é que existem muitos bolsonaristas arrependidos e, pior do que um bolsonarista arrependido é um bolsonarista que ainda não se arrependeu.

Mas tem uma coisa que me incomoda e me fascina ao mesmo tempo e muito, mas muito mesmo, porque não consigo entender, não consigo processar em meu cérebro ou nos meus sentimentos. Sabe! Sempre ouvi dizer que é possível aprender pelo amor ou pela dor. Ouvi muito dizer que algumas pessoas só aprendem pela dor e até consigo entender sem problema. Afinal, aprende-se de diferentes maneiras e é preciso conhecer as pessoas e possibilitar que elas aprendam, seja qual for o método necessário.

Mas o que dizer de uma pessoa que perdeu o pai de Covid, antes da existência da vacina, que o Bolsonaro não quis comprar e só comprou quando não teve mais como evitar?

Essa mesma pessoa, que enterrou seu pai sem velório, continua não usando máscara, fazendo discurso contra a vacina das crianças, mesmo tendo ela mesma se vacinado e ainda repetindo os discursos idiotas e assassino do capitão, como pode?

Será que o Edgar Scandurra está certo e o ditado popular errado? O ser humano ou ao menos os seres bolsonaristas estão vivendo e não aprendendo?

Nem pela dor, já que amor é algo que eles e elas não compreendem ainda?

Sigamos questionando.


Este texto foi adaptação do podcast MÚSICA PARA PENSAR e a versão original pode ser ouvida aqui:


Ernande Valentin do Prado é Enfermeiro, Sanitarisa e continua aí mandando brasa.

28 janeiro 2022

Trabalho escravo em terra de rato


        


O tempo passa por nós de uma forma que nem sempre dá para perceber. As coisas mudam o tempo todo, mas nem sempre a gente consegue ver e sentir. Quer um exemplo, a pouco mais de 200 anos era totalmente normal ter um escravo em casa ou na fazenda. Eles executavam todas as vontades do branco endinheirado (mesmo que à base de chicotadas no lombo) e produziam a riqueza que outros desfrutam até hoje. 

Até pessoas aparentemente boas e normais não conseguiam ver que ter um escravo era, e continua sendo, o cúmulo do absurdo da indignidade humana. E todo escravocrata, todo, sem exceção, deveria ser jogado ao mar ou trancado em um cela com o Capitão Jair e ser obrigado a ouvi-lo contar suas piadas racistas, machistas e homofóbicas (se bem que isso já seria crueldade demais, melhor ser jogado ao mar mesmo, aquele de Recife que tem tubarão, é menos cruel).

Hoje em dia ninguém acha normal manter uma escrava ou um escravo em casa, nem para lavar a louça, nem para cuidar de seus filhos e nem dar de mamar a eles e depois, no fim da noite, ainda ser estuprada, se fosse mulher ou ter de realizar as fantasias mais chocantes da patroa, se fosse homem.

Eu não consigo nem imaginar como deveria ser humilhante ser escravo e não me imagino convivendo com um escravocrata (eu mesmo prefiro ser jogado ao mar de Recife a ter que apertar a mão de um escravocrata ou ter que olhar na cara de um ser tão desprezível).

Acredito que hoje em dia, nem as pessoas mais asquerosas, mais esnobes e almofadinhas, como Dória, Sérgio Moro, vulgo Marreco de Maringá, que tem cara de que odeia pobres, conseguiriam ter um escravo. 

A maioria dos empresários brasileiros são ridículos, mamam nas tetas do estado através de benefícios fiscais, sonegação e maracutaias, não recolhem impostos de renda, pagam mal aos assalariados, defendem que o salário mínimo é muito alto e que deveria baixar (por isso apoiam o presidente militar). Esses empresários acreditam que os trabalhadores têm direitos demais e querem cortar toda e qualquer forma de proteção social. E a esse golpe covarde chamam de reforma modernizante.

O empresariado brasileiro deseja as mesmas normas fiscais e trabalhistas dos Estados Unidos e ao mesmo tempo continuam pagando os piores salários do mundo. Acreditam (ou falam só para enganar idiotas) que os motoboys, que entregam lanche se arriscando no trânsito ou que os motoristas de Uber, são empreendedores. E foda-se se os empreendedores não conseguem manter uma vida digna: com alimentação adequada, saúde, escola e lazer. Foda-se se o motoboy sofrer um acidente e o deixar inválido ou se sua filha ficar órfã, afinal de contas, o lucro, na cabeça destes empresários que odeiam imposto, deve ser privado, mas as despesas devem ser do SUS, devem ser do estado que eles odeiam. Mamam no estado, mas odeia o estado.

O estado, para existir, precisa do dinheiro dos impostos, mas Uber, Netflix, I-food, entre outras grandes empresas, e até o dono do mercadinho do seu bairro, aquele que não registra as compras, passando pelo Veio Asqueroso da Havan, não querem nem ouvir falar em imposto. Dizem que é roubo. Mas sabe quem é mesmo o ladrão? 

Mas, ninguém, nem estes empresários abomináveis seriam capazes de ter escravos, não é verdade?

Quer dizer, nem Dória, nem Moro, nem o Gustavo Lima que, dizem, demitiu toda a sua banda e os re-contratou com metade do salário anterior, teriam escravos, hoje em dia.

Mas o Ratinho, sabe, aquele apresentador do SBT, que faz aquele programa de TV que é uma merda e defende que se fuzile quem pensa diferente dele (e diferente do que prega o Capitão), sabe quem é?

Aquele que o Enéas Carneiro, eterno candidato a presidente e que todos diziam ser muito inteligente, mas que de fato tinha muitas ideias fascistas, sabe? Ele chamava o Ratinho de senhor Rato. E realmente o Ratinho é um senhor rato. Acho que ninguém duvida.

Lembrou quem é o Ratinho?

Ele é pai do Governador do Paraná, então, esse mesmo. Ele teria escravos sem problemas, ao que parece. Ouvi dizer que ele já foi condenado por ter trabalhadores escravizados em suas terras, três vezes, isso mesmo, três vezes ele foi condenado, sabia disso?

Então, ninguém, fora o Ratinho, tem coragem de ter escravos. Ou estou sendo muito otimista?

Será que ainda existem pessoas tão asquerosas, desumanas, cidadãos brancos de bens que teriam coragem de ter escravos no Brasil de hoje em dia?

Acho difícil de acreditar, acho até que exageram quando dizem que em São Paulo está cheio de trabalhador vivendo em regime de escravidão, são Chineses, Colombianos, Bolivianos e até brasileiros. Ouvi dizer que esses trabalhadores escravizados costuram roupas que depois são vendidas em lojas muito chiques e compradas por descendentes dos senhores de escravos de antigamente. Parte desta história foi mostrada naquele filme fantasioso: "7 prisioneiros", da Netflix, você viu?

Netflix, você sabe, é aquela multinacional bilionária que tem 19 milhões de assinantes no Brasil e não paga impostos, não gera riqueza para o Brasil, só lucra, sabe qual é, né?

Então, liga lá na Netflix e veja 7 prisioneiros, filmado em São Paulo. Vão perceber que é tipo um Game of thrones brasileiros, um O senhor dos anéis, ou seja, pura fantasia, porque eu sei que no Brasil, fora nas terras do Ratinho, não existe trabalho escravo. Repito, não tem escravos vivendo no Brasil, a não ser nas fazendas do Ratinho e talvez nem lá, afinal de contas, se fosse verdade, certamente ele estaria preso e teriam até jogado a chave fora ou o teriam jogado no mar.

Imagina se o Silvio Santos, por mais demente que esteja, permitiria que um escravocrata apresentasse um programa em sua TV. Uma coisa é bajular general torturador, presidente genocida, vender carnês para otários, digo, telespectadores e donas de casa e outra bem diferente é aceitar um condenado por trabalho escravo em seu canal, né não?

Afinal, Sílvio Santos é povão, é homem de bem e sabe que quem é escravizado, nas terras de ratinho ou nos apartamentos do Leblon (no Rio de Janeiro) ou no Jardim Luna (em João Pessoa), são povão e ele não iria aceitar que o Ratinho fizesse isso com seu público ou iria?

Então é isso, não tem trabalhador escravizado no Brasil e este é um texto de ficção. 


Este texto foi adaptação do podcast MÚSICA PARA PENSAR e a versão original pode ser ouvida aqui:

Ernande Valentin do Prado é Enfermeiro, Sanitarisa e continua aí mandando Brasa. 

05 novembro 2021

SAGARANA ROUBADO

 


Ernande Valentin do Prado

 

Fátima serviu-se na cozinha com arroz, feijão, frango e mais alguma outra coisa e foi para sala com o prato na mão. Para. Antes de falar de Fátima, preciso falar de minha mãe, Dona Iolanda. Ela é mineira, e isso por si só quer dizer que cozinha em panelas gigantesca, prevendo que alguém inesperado vai chegar. E Fátima sempre chegava. Chegava tanto que nem era mais inesperada, minha mãe já cozinhava pensando nela:

— A Fátima gosta de almeirão cortando bem fininho,

ou

 — vou fazer sopa de batata com massa de tomate, que a Fátima gosta.

Fátima trabalhava no Centro da cidade em um laboratório de revelação fotográfica especializada em filme preto e branco.  Revelação de filme é uma coisa que os mais novos talvez nunca tenham ouvido falar e quem tem idade para saber, pode nem ter memória para se lembrar. Em todo caso é bom dizer, houve um tempo em que não existia fotografia digital e as fotos precisavam ser reveladas em laboratórios. Existiam rolos Kodak ou Fuji de 12, 24 ou 36 poses. E revelar essas fotos era o trabalho de Fátima.

Por volta das 20 horas a gente já começava a esperar por Fátima. As vezes ela chegava muito tarde e minha mãe cansava de esperar, guardava as panelas, mas para ela isso não era inconveniente, ia para cozinha, esquentava tudo, comia, lavava a louça, sentava para ver um pouco da novela, bater papo e só depois ia para casa.

Voltando ao caminho entre a cozinha e a sala: Fátima flagrou o livro: Sagarana, de Guimaraes Rosa, descuidadamente em cima da TV. Com uma mão segurava o prato, com a outra pegou o livro, olhou a primeira página e disse:

— Este livro é meu.

— Como assim, esse livro é seu?

Me apressei em questionar, desacreditar e acrescentar:

— Eu roube este livro do Paulo.

— Eu tinha emprestado para o Marcelo,

disse Fátima,

— que disse ter emprestou para o Valdemar, que emprestou para alguém e não lembrar quem, faz uns três anos, em um encontro do grupo de jovens.

Sagarana, de Guimarães Rosa. Um livro clássico de contos. Importante, imponente, elegante e de uma boniteza que não dá para medir. Eu não tenho mais esse exemplar. Emprestei para algum ladrão e perdi no labirinto do tempo. infelizmente Marcelo, o primeiro ladrão do livro, morreu de COVID-19. Saudade de todos: Fátima, Paulo, Valdemar, Marcelo, minha mãe, meu pai, minhas irmãs e do livro roubado.  

16 outubro 2020

UMA DESESPERANÇA

 


Não precisa ser uma pessoa muita atenta, desta que presta atenção até na tonalidade das cores, para entender porque Amália escolheu fazer o que fez, exatamente naquele lugar, naquela cidade chamada “solitária”.

Depois de decidida ela planejou tudo com atenção, com uma meticulosidade cruel e irritante.  Para não haver dúvidas, deixou um bilhete escondido entre as páginas do livro de Luiz Felipe Leprevost, “Dias nublados”, que começou a ler dois dias antes. Certamente o bilhete seria encontrado, porém quando isso acontecesse ela já “estaria na rodoviária, talvez até na autoestrada”.

No bilhete, em letras pequenas, redondinhas, quase desenhadas, explicava: “Cansei de ser joguete, cacete. Cansei de ser tão maltratada”.

O incrível, o espantoso, o indescritível é que mesmo diante das terríveis emoções que dilaceravam seu coração, Amália ainda preparou o jantar: “deixou bife e arroz no microondas”, como sempre fazia quando não podia esperar por ele, o que raramente acontecia e quase somente quando saia com seu grupo para ler poesia para estranhos apresados, nas geladas praças de Curitiba.

Quer dizer, suponho que seu coração e sua alma estivessem dilacerados, suponho apenas, não sei dizer se realmente ela se sentia assim ou se neste momento o que se sente é a calma da certeza, a serenidade da decisão tomada e o alivio antecipado pelo que virá depois ou pelo que não virá. Realmente não sei.

A rosa recebida na noite anterior, como um pedido de desculpas, jogou na privada, mas não deu descarga. Isso deveria ser um recado, uma explicação. Deveria? Não, certamente não deveria ser uma explicação, era de fato um recado muito explícito, inequívoco: não consigo mais perdoar. Não desta vez.

A aliança deixou na mesinha de cabeceira. Era grossas, pesada, cara, destas que causam inveja. Pensou que ele poderia vende-la e com o dinheiro pagar as contas, que não eram poucas.

Na penteadeira, essa mesma onde ela dizia que cabia seu amor, “cabia três vidas inteiras”, mas que ficou parcialmente desocupada, deixou o celular, os perfumes e as poucas maquilagens que raramente usava.

No banheiro deixou a escova. Apenas pegou dele a lâmina de barbear. E saiu levando apenas a desesperança. Chegando lá, lá onde ela ia, lá onde o amor que morria nasceu há seis meses de foram arrebatadora, intensa e irresistível, rasparia os cabelos que ele amava (uma pequena vinganças talvez) e beberia querosene... e se isso não fosse suficiente, cortaria os pulsos. Fundo, bem fundo, deitada na banheira do mesmo quarto onde fizeram, pela primeira vez, amor.

Para ouvir o podcast:

Música para pensar

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

29 maio 2020

HISTÓRIAS COLHIDAS NO LIGUE CORONAVÍRUS




Ernande Valentin do Prado
Nas últimas semanas tenho atendido a população no Ligue Coronavírus, um serviço que presta informações relacionadas ao Coronavírus e ao Covid-19 para os usuários do Sistema Único de Saúde.
A maioria das pessoas ligam para conversar sobre sinais e sintomas, geralmente de conhecidos, parentes e amigos que, segundo elas, não conseguiram ligar.
O trabalho é cansativo, mas gratificante e aqui quero contar algumas das histórias que passaram pelos meus atendimentos.
1
Mais ou menos às 7h15min, recebo a última ligação do plantão, que começara por volta das 17h30min. O motorista, que pela manhã vem buscar o telefone, já deveria estar aqui, mas atrasou uns minutos e atendo mais uma ligação.
Minha mãe está com febre há sete dias,
disse a voz da filha do outro lado da linha.
— o que eu faço, já estou desesperada?
— Só um minuto, eu disse,
e atendi o outro telefone. Era o motorista.
— Aguarde dez minutos, por favor, estou no meio de uma ligação.
— Eu só tenho seis reais de crédito,
disse a mulher,
— por isso quero falar bem rápido.
Disse isso e a ligação caiu.
Imediatamente procurei no registro do telefone o número dela e liguei. Ela continuou contanto:
— eu sei que seu plantão está acabando, mas eu estou desesperada.
Era uma senhora que falava de modo simples, perguntava e aguardava a resposta, complementava as informações. Um pouco afobada, ansiosa, talvez por já ter ouvido várias coisas diferentes ou por achar que estava incomodando, por ser o fim do plantão.
— O atendimento só termina quando a senhora estiver satisfeita,
eu disse. Ela agradeceu, visivelmente com a voz entrecortada, emocionada. E essa era uma característica dela e da maioria das pessoas que atendo, ficam imensamente agradecidas pelas informações, aliviadas.
— Talvez ela não tenha conseguido dormir essa noite,
pensava eu enquanto ouvia e, por mais que o motorista estivesse esperando ou que eu quisesse dormir, essa era a hora em que eu deveria cumprir o juramento de cuidado, que fiz em minha formatura.
Segundo as informações, o único sintoma da mãe era a febre, que ela achava que tinha. Nada mais. Expliquei os sintomas da Covid-19, os cuidados necessários para prevenir e o que fazer se a situação mudasse.
“Ouvidamente” deu para perceber o alívio na voz da mulher. Ela respirou, aspirou o nariz, não aguentou e chorou, ao mesmo tempo em que continuava verbalizando (ou tentando verbalizar) seus agradecimentos.
— Muito obrigado, dorme com Deus, o senhor foi um santo.
Quase chorei junto com ela ao perceber que naquele fim de plantão pude fazer a diferença para a vida de alguém. Mais de vinte anos de SUS e ainda consigo me emocionar, acho que ainda estou no caminho certo.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

15 maio 2020

A APRENDIZAGEM NO ESMAGAR O DENTE DE ALHO




Ernande Valentin do Prado

No intervalo da aula do Curso de Especialização em Saúde Coletiva, formou-se um grupinho entre professores e estudantes. A conversa era sobre comida e a estudante disse:
— É muito fácil usar o alho como tempero, basta esmagar e fritar no óleo.
E nem foi para mim que ela falou. Só escutei porque estava perto. Mesmo assim aprendi.
A aprendizagem se dá dos modos mais diferentes e improváveis e ultimamente tenho percebido que quando acontece sem a intenção do ensino, parece ser mais efetiva.
Lembrei disso porque estava cortando o dente de alho em pedaços finos para depois esmagar, o que deixa a tarefa mais fácil, e me dei conta que a partir da fala da estudante eu fui desenvolvendo outras técnicas para esmagar e para usar o alho em diferentes situações. Cortá-lo primeiro já foi um pouco de minha evolução.
O conhecimento de que bastava esmagar o alho foi o caminho das pedras que possibilitou os primeiros passos no uso do alho como tempero do feijão e depois para outras alimentos. A conversa aconteceu na escola, não na aula e essa é uma diferença significativa. O que ouvi foi um disparador, um ponto de partida, aonde eu cheguei ou ainda vou chegar com esse conhecimento é responsabilidade minha. E as possibilidades são muitas e algumas delas nem tem a ver com comida ou alho. Por exemplo, esse texto tem a ver com aprender e ensinar, mas é derivado da aprendizagem sobre o alho, percebe?
Será que não cabe ao professor e a escola, nos dias de hoje mais do que ontem, criar esses momentos para que os estudantes possam aprender?
É mais do que provável que a maioria dos professores já saibam que não cabe a ele ser o detentor do conhecimento para depositar nos estudantes, afinal de contas há muitos anos Paulo Freire disse que ensinar não é transferir conhecimento. Por outro lado, Freire também disse, especialmente no livro Pedagogia da autonomia, que ensinar não é simplesmente transferir conhecimento e que esse saber não deve se limitar a um discurso do professor, precisa ser aprendido, vivenciado e testemunhado constantemente.
Será que o professor, além de saber, acredita nisso?
Testemunhar é o que estou fazendo neste texto.
Faço isso sempre que posso, não apenas em texto. Vivo isso no meu cotidiano de trabalho no Apoio Institucional da Secretaria de Estado da Saúde a partir do Centro Formador de Recursos Humanos da Paraíba e já venho fazendo há mais de dez anos nos cursos de Enfermagem e de Saúde Coletiva.
Há quem tente opor conteúdo e método, porém essa dicotomia não existe na prática. Também não existe forma de dar uma aula conteudista sem utilizar algum método, até porque projetar slide, uma transparência ou falar tudo de memória enquanto segura um giz, é método. Não há aula sem conteúdo e não existe contradição entre método e conteúdo, as duas coisas são importantes e precisam ser consideradas em qualquer modelo de aula.
O que diferencia uma aula conteudista de outra pensada para que o estudante desenvolva os conhecimentos, é a forma, a quantidade de conteúdo que irá fazer parte da aula e principalmente como e para que irá fazer parte.
De um modo geral, em uma aula conteudista, o objetivo é repassar os conhecimentos do professor para a cabeça dos estudantes e este, em um dia agendado ou surpresa, deverá devolver o conteúdo, provando que tem memória. Neste caso não precisa nem saber para que o conteúdo ouvido serve ou onde e como pode ser aplicado. Geralmente essas não são preocupações do professor e da professora conteudistas.
Já em aulas problematizadoras, sobretudo freireana, o objetivo não é repassar conteúdo. Ele é pano de fundo para dialogar, refletir sobre as formas de intervir positivamente na comunidade e ponto de partida para o desenvolvimento e aplicação dos conhecimentos, algo parecido com o que aconteceu comigo em relação ao alho.  
Outro aspecto que precisa ser levado em conta e nem sempre é, tanto em uma aula quanto na outra, é que elas devem ser preparadas. Essa é uma questão que nem sempre é observada, seja por falta de tempo ou pelas crenças do professor. Problematizar e até repassar conteúdo, não pode ser feito de improviso.
A aprendizagem acontece o tempo todo, não apenas na aula em si, como na história do dente de alho. Por isso creio que os professores deveriam levar em conta, ao preparar as suas aulas, que é importante criar situações para que isso aconteça, pois não basta esperar e improvisar em cima. A responsabilidade de “ensinar” continua sendo do professor e da professora.
As aulas precisam continuar sendo pensadas e preparadas com rigor e poder-se-ia levar em conta que a aprendizagem não acontece apenas dentro da sala, seja na exposição de conteúdo, seja na problematização e no diálogo. A aprendizagem acontece em múltiplos e simultâneos momentos antes, durante e depois da aula.
Será que ao planejar uma aula o professor e a professora pensam na função do intervalo ou consideram ele apenas um momento para ir ao banheiro, comer ou acessar o celular antes de depositar mais conteúdo nas cabeças dos estudantes?
E os momentos de confraternização, são partes do processo de aprender a conviver ou uma concessão do professor para o ócio? Enfim, é importante que a escola seja aproveitada como um todo para produzir aprendizagem e não apenas a aula em si. Se aprendemos em comunhão, como fala Freire, não seria bom criar momentos para que a comunhão aconteça na aula e na escola deliberadamente e não apenas como efeito secundário?
Sobre os momentos de aprendizagem que estão no entorno das aulas e das escolas, escrevi mais em minha dissertação: Estamos construindo uma catedral, que a editora Hucitec prometeu lançar como livro ainda em 2020.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


01 maio 2020

HOMENAGEM À SERGIO MORO

Gato de navio. Capturado através do Google, 2020.



Ernande Valentin do Prado

Quando o navio
começa
a afunda

Os ratos
são os primeiros
a perceber

e a saltar fora

Apesar do incrível
instinto de
sobrevivência

Ratos
são ratos

Não há nada
para se admirar
nos ratos

São pestilentos
espalham doenças
e pragas

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



24 abril 2020

SOU UM SONHO

Tatuagem de parede, Recife, 2019.

Ernande Valentin do Prado
Quando acordou
lembrou-se 
do sonho

De novo
foi o mesmo

Na rua
viu brevemente
o suficiente
para
sentir
uma
pontada
no
coração

Durante o dia
Ficou relembrando
Cada detalhe

Incluiu
por conta própria
novos detalhes não sonhados

Para preencher lacunas
para dar sentido

Um olhar
um sorriso
um aceno

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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