A minha família, do jeito que Seu José Conheceu. Ernande, 2009. |
Ernande Valentin do
Prado
Desde que sai do Paraná
tenho andado por muitos lugares, conhecido muitas pessoas, de alguns lugares e
de algumas pessoas já escrevi, de outras ainda vou escrever. Hoje acordei pensando
em Seu José, que conheci em Paripiranga, na Bahia. É dele que vou falar.
Quando sai do Mato
Grosso do Sul, pouco depois de ser demitido pelo prefeito de Rio Negro por não
ter feito campanha pela sua reeleição, fui para Pedro Gomes, mas as condições
de trabalho na cidade eram tão ruins, ganhava tão pouco que resolvi aceitar uma
proposta para lecionar na Bahia, em uma faculdade particular. Fui na frente,
havia urgência de começar no trabalho, depois Larissa vendeu as nossas coisas,
que eram vendáveis, doou algumas, empacotou outras (que não podiam ser
vendidas) e foi com nossas crianças.
Em Paripiranga aluguei
uma casa enorme, mas não tinha nada para por dentro, nem cama, nem sofá, nem
cadeiras (foram tempos muito difíceis). A proprietária da casa emprestou-me a
geladeira, o fogão, uma mesa e três cadeiras. Comprei uma TV usada de 14
polegadas, muito ruim, sem foco e precisei regular a antena parabólica, que já
estava instalada na casa. Foi por causa da antena que conheci seu José, que veio
para ver o que tinha de errado com ela.
Seu José tinha mais ou menos
um metro e sessenta de altura, um rosto cansado, mas muito confiável (lembrava
meu pai, não sei exatamente porque), trabalhava com paciência exasperante, falava
baixinho e muito arrastado. Não entendia praticamente nada que saia de sua boca, mas nos comunicávamos bem.
Ele veio um dia no fim
da tarde, ligou a fita da antena até a televisão, tentou fazer a programação,
mas não deu certo. Ficamos conversando muito tempo, quer dizer, ele falava, eu
não entendia o que. Depois ele disse que precisaria subir no telhado, ver a
antena, como já estava escuro, voltaria no dia seguinte com uma escada.
No fim da tarde do dia
seguinte ele voltou, subiu no telhado, não arrumou nada, mas disse que voltaria
no outro dia, que precisaria trocar uma peça ou coisa assim. Durante toda a
semana ele veio: mexeu na tv, na antena, tomava um café, falava muito, trocava
uma lâmpada, puxava outras conversas, instalava o chuveiro e não arrumava a
antena.
Depois de uma semana,
todos formos nos acostumando com ele, com seu jeito manso, confiado, presente.
Nem acreditávamos que ele sabia arrumar antenas, mas paramos de nos importar,
sentíamos falta quando ele não aparecia. Como a cidade era pequena, começamos a
encontra-lo na rua, no supermercado, na pizzaria, na loja de ferragens. Quando
Larissa saia, voltava dizendo:
- Vi seu José, ele te
mandou um abraço. Disse que passa aqui para ver a antena qualquer hora.
E esse negócio foi se
arrastando por dias, semanas, meses. Do trabalho que fez, pouco recebeu, parecia não querer concluir o negócio. As vezes ele fazia contas parciais e eu pagava
um pouco. Quando havia outros serviços
elétricos em casa, ou nas outras três casas em que morei, Seu José era chamado,
outras vezes chamávamos por nada. Ele não concluía as arrumações de verdade,
mas era agradável a sua presença.
Depois de um tempo,
comecei a ver Seu José bêbado na rua, ás vezes até caído na calçada. Descobri
sua história: fora casado, tinha três filhos já adultos, fora o melhor
eletricista da cidade, diziam. Larissa conheceu sua ex-mulher, uma senhora
forte, de cabelos grisalhos, dizia que seu José era uma pessoa maravilhosa, mas
não conseguia parar de beber, as vezes passava tempo sem tomar um gole, mas
sempre tinha recaídas. Por isso estavam separados, mas sempre dava um jeito de
olhar por dele.
Seu José morava em uma
casinha de duas ou três peças, aonde eu desviava o caminho para passar em frente indo para o trabalho. Quando a porta estava fechada, era sinal de que tinha
bebido. As vezes passava dois ou três dias bebendo, não trabalhava, a barba
ficava grande, a fala mais arrastada e incompreensível. Quando aparecia com
a barba feita, roupa limpa, sabia que estava sem beber. De início não deixava
de me cumprimentar e conversar, mesmo estando alcoolizado, mais com o tempo as
bebedeiras foram ficando mais longas, mais profundas, durando mais dias. Nesta
época evitava me olhar, conversar comigo, ir em casa. As vezes fazia de conta que não me via no supermercado ou na rua.
Nos últimos meses, era
frequente lhe encontrar caído entre o caminho de casa e o da padaria. Muito
triste, ficava sem saber o que fazer, se o cumprimentava, tentava ajudar ou ignorava. Não
conseguia me decidir o que lhe magoaria menos. Uma coisa parecia certa, Seu José
desperta muito carinho nas pessoas que o conhecia. Da mesma forma que era comum
lhe encontrar caído nas calçadas, era comum sempre ter alguém ajudando, pessoas
carregando-o para casa. Em sua rua, cada vez que eu batia na porta (quando
passava muito tempo sem o ver), os vizinhos sabiam informar sua situação, justificar,
explicar, tudo com muito respeito, sem ofender, sem julgar.
Pouco antes de me mudar
para Dias D’Ávila, estava pensando em como iria me despedir de Seu José, queria
chama-los para um almoço, falar da mudança, pedir ajuda para arrumar as coisas,
mas poucos dias antes recebi a notícia de sua morte. Meu primeiro pensamento
foi:
- Agora não terá mais
que aguentar o peso deste mundo.
Não fiquei exatamente
triste, talvez até aliviado.
Hoje, sem nenhum motivo
certo, acordei querendo contar essa história e, de alguma forma, homenagear Seu
José.
Obrigado por não ter
arrumado a antena de minha tv.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
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