“Vivendo e não aprendendo
Eis o homem, este sou eu”
Edgar Scandurra
Todos os anos, no mês de novembro, os meios de
comunicação, as associações de urologistas e até os serviços públicos de saúde,
se unem para tentar convencer os homens a liberar o fiofó. Chamam isso de
novembro azul (e é preciso que alguém diga, então vou dizer: isso de dar nomes
de cores aos meses já saturou e tem mês com congestionamento de cores nas
costas, ou seja, já deu, né?)
Olá, meu nome é Ernande e este é Cuidado, Saúde e
Cidadania, o podcast da Série SUS.
Essa história que vou contar aconteceu com um amigo meu,
juro, isso aconteceu com um amigo meu, não foi comigo.
Ele caiu numa dessas propagandas enganosas de novembro,
não a da Black fraude, aquela em que o comércio vende tudo pela metade do dobro
do preço, mas a propaganda enganosa do novembro azul.
Ele escutou no rádio a promessa de que tal serviço de
saúde estava oferecendo consultas médicas para conversar sobre a saúde do
homem. A Fake News ainda prometia que não se tratava de exame de próstata ou
não só exame de próstata, que poderiam falar sobre outros problemas de saúde e
já encaminhar tudo de uma vez, tá ligado?
E esse meu amigo, muito desconfiado, mas aos 53 anos e
sentido que já não começava a urina com a rapidez de antes, que seu jato de
urina estava mais para um teco-teco do que para um Concord, resolveu ir a essa
consulta e, claro, não poderia deixar de ser, foi enganado.
Para piorar, quando ele chegou no tal serviço, só tinha
ele aguardando, mas logo depois chegou uma equipe de jornalismo e meu amigo deu
até entrevista ao vivo. Logo depois de falar na Globo, começaram a chegar uma
multidão de homens (cinco) procurando a tal consulta com o Clínico Geral, a tal
consulta de saúde do homem. Enfim, dizem que a TV está morrendo, mas ela ajudou
meu amigo, com muita facilidade, a enganar outros cinco homens, que poderiam
estar numa boa tomando uma gelada no bar e falando mal do Diniz e do Neymar ou
do novo presidente da Argentina, aquele Bolsonaro priorado.
Meu amigo é da área de saúde e defende o SUS, mas tem
dias que ele se pergunta:
— Será que não estamos só nos enganando e enganando o
povo? Se bem que não teria saída melhor, afinal o ruim é melhor do que nada,
não é mesmo?
A promessa do SUS era que o sistema seria organizado,
que teria atenção regionalizado, racional, com universalidade e integralidade.
Olha que palavra bonita, integralidade, ou seja, o SUS
prometia cuidados com profissionais que conseguiriam nos olhar como um todo,
não apenas como peças enferrujadas, quebradas ou imprestáveis.
Já ele, esse meu amigo, já ficaria satisfeito se não
fosse tratado como um idiota juramentado.
A verdade, e eu conheço bem esse meu amigo, é que ele é
um romântico inveterado, um esperançado e acha que um dia a coisa vai dar
certo, embora em seus 53 anos, não consiga se lembrar de dois exemplos de
quando isso deu certo. Tá ligado? Ele é tipo o Edgar Scandurra, lembra,
(guitarrista e compositor da banda Ira!) que nos seus 15 anos, disse:
“vivendo e não aprendendo,
eis o homem, este sou eu”
Ou melhor, esse é ele, ele e o meu amigo, esse otário.
Eu só vou à benzedeira e no máximo faço consultas pelo youtube.
Os meus ombros doem, quer dizer, os ombros do meu amigo
doem e já tem um tempo, mas como ele sabia que é quase impossível encontrar um
terapeuta que consiga se importar ou ser profissional a ponto de investigar,
fazer as perguntas certas e pedir os exames corretos e exatos (ou quase) e que
poderiam confirmar os possíveis diagnósticos, fui enrolando, enrolando até não
aguentar mais. Aí ficou fácil cair na fake News de consulta com clínico no
novembro azul.
Mas a merda é ainda maior, porque ele pressentiu de cara
que a coisa não ia dar certo e mesmo assim persistiu no erro. Quando o médico
entrou no recinto, vários homens estavam reunidos, a maioria servidores do
estabelecimento e a maioria, como não poderia deixar de ser, eram mulheres.
— Até aí, tudo bem, disse o frango na porta do forno.
Feito os discursos de boa vontade, meu amigo identificou
o médico, usava um jaleco branco encardido, tinha uma cara de cansado e saco
cheiro às nove da manhã. E meu amigo pensou:
— Isso não vai dar certo.
Mas a culpa é dele, poderia ter fugido, mas não fugiu,
ficou lá insistindo no erro. Depois o médico estendeu a mão e ele pensou:
— Vai ver eu estou enganado, afinal de contas, qual o
médico que estende a mão para o usuário?
Mas ao segurar na mão de gelatina, do cara, pensou,
desanimado:
— Entendi.
Mesmo assim, aceitou a consulta. E foi só para
confirmar:
— Que merda.
Estender a mão e nem apertar, foi a única coisa mais ou
menos decente que o Dr. mão de gelatina fez. Depois foi ladeira abaixo. Só fez
preencher uma ficha encaminhando meu amigo para um especialista. Ele ainda quis
dizer que tinha diabetes e que seu ombro estava doendo, mas o Dr. cortou e
disse para contar sobre a dor para o reumatologista. Nem para fazer o teste de
glicose, que as Enfermeiras estavam realizando ao lado, ele orientou. E
adivinha?
O Dr. mão de gelatina nem encaminhou meu amigo para o
reumatologista e sim para o urologista, afinal é novembro azul, ele tem 53 anos
e saúde do homem é prevenção de câncer de próstata e só, não é verdade?
Eu aposto que o Dr. mão de gelatina ainda pensou:
paciente chato, exigente, que vá tomar no cu. E falou:
— Tchau.
Ou foda-se, ou:
— Próximo.
Anunciando que a consulta acabou, que quer dizer:
— Não insista que é só isso mesmo, otário!
Entre essa consulta (ridícula) e a próxima consulta
(ridícula) com o especialista, meu amigo encontrou, bem por acaso, uma
terapeuta holista praticante de TPO ou Método de Saúde Okada e ela, olhando meu
amigo como um todo, usou suas poderosas mãos e fez sua dor sumir por quase 24
horas.
Ele deveria ter parado por aí, afinal estava ganhando,
mas burrice não tem cura. Seguiu pensando que ao menos o urologista iria te
ouvir, se não ouvir, ao menos lhe encaminharia para um reumatologista ou
ortopedista ou um outro “ista” qualquer, mas... insistindo em ter fé em algo
que só dá errado, ao menos com ele e de forma repetida), afinal a consulta foi
agendada no Hospital Universitário, que dizem que é onde estão os melhores
profissionais (e a coisa é tão feia, que realmente deve ser verdade).
A maioria dos profissionais de saúde não sabem ou não
querem ver os ser humano como um todo. E nem acho que o problema seja só a
altíssima especialização a qual são submissos e submetidos voluntariamente ou
não, não importa. Quase sempre a regra é atender mal, gastar o menor tempo
possível e empurrar com a barriga e gritar:
— Próximo.
E Foda-se se a sua dor, seu mal estar, o problema é seu,
que pague uma nova consulta com um novo profissional (que também será tão ruim
quanto este). A lei é de oferta e da demanda e se todos são ruins, então todos
estão com a clientela garantida.
— Não tá satisfeito, vá ao Procon, que não vai resolver
nada também.
Fode-se você e, aproveitando a oportunidade, vai tomar
no seu cu que eu vou tomar whisky ou Campari, mais tarde.
— Foda-se a integralidade.
Então, a coisa é mais ou menos assim:
Parece que o sistema é feito para não funcionar e isso
desde a porta até o atendimento final, afinal de contas o porteiro do Hospital
Universitário, que é o melhor dos melhores, precisou chamar um colega (trabalho
colaborativo – coisa bonita) para melhor confundir o meu amigo nos caminhos do
hospital. Se não fossem pacientes fiéis que já conhecem o labirinto do HU,
talvez ele estivesse lá até hoje, perdido, morto de fome ou devorado pelo
Minotauro.
Resumo da saga:
Você vai ao seu bairro, enfrenta a fila, porque ninguém
no sistema sabe que dá para agendar consulta com dia e hora marcada. Aguarda
até ser atendido pelo Dr. mão de gelatina, que apesar de ser formado em
medicina (eu espero), receber salário pela função de médico (certamente
ganhando mais do que merece), trabalha como despachante, preenchedor de
cabeçalho de ficha (com aquela letra maldita).
Aí você aguarda duas semanas (até que foi pouco, perto
de outras histórias que se ouve). E vai a consulta, acreditando (apesar de
saber que é uma crença vã) que vai ser ouvido, que vai trocar uma ideia com um
Dr. mais preparado e tal, afinal é um Dr. Médico, Professor da Universidade
Pública). Encara o labirinto e senta na frente do especialista que gritou seu
nome sem tirar a bunda da cadeira, que estava escrito na ficha feita pelo Dr.
Mão de gelatina.
O especialista não te olha, não responde ao seu bom dia
e nem te estende a mão.
— Foda-se,
afinal de contas ser simpático não é parte das regras ou
é? Ele continua escrevendo na ficha, no tal do prontuário, mas escrevendo o que
e para quê?
— Ele não perguntou nada e já escreveu o que meu amigo
tem, o que meu amigo precisaria fazer, qual procedimento adotar?
Claro, nessa hora meu amigo já tinha perdido a fé
completamente e estava se sentido um perfeito otário. Que ele é mesmo, mas não
só ele, todos nós somos.
Mesmo assim tentou dialogar, mas suas opiniões não
importavam, eram idiotas demais, afinal de conta já estava tudo anotado antes e
não tinha mais espaços para dúvidas ou para outras possibilidades e, também, o
especialista ganha como médico, mas é só mais um despachante das instituições
que vão fazer os exames que ele não vai saber ler, se é que vai ler. Sem falar
que pode até ter uma participação nos lucros, vá saber.
Nesta brincadeira, meu amigo perdeu 15 dias, algumas
horas e a esperança, só andando de um lado para o outro sem fazer absolutamente
nada que importasse para resolver seu problema de saúde e ainda terá que voltar
ao seu bairro e tentar agendar os exames, sabe-se Deus para quando.
O sistema atual faz seus operadores, seus atores
principais (com ou sem méritos) parecerem burros ou mal intencionados e
constantemente as duas coisas. Vai-se em uma consulta com o clínico, que não te
ouve e te encaminha para um especialista que também não te ouve e pede uma
dúzia e meia de exames para se livrar bem rápido de sua presença incomoda. Aí
você volta ao local onde o clínico te encaminhou para o especialista e, se
tiver sorte, agendar os exames. E algum dia, vai fazer o exame e só então volta
ao especialista, que diz, passando os olhos pelos dados impressos a laser em
uma folha em branco, diz:
— Não deu nada.
E na ignorância ou na má vontade (má fé) do
especialista, ele faz de conta que você mentiu para ele, que não sente nada e
que ele fez tudo certo, tudo que poderia fazer. Mas exames não dão nada, nunca
dão nada, se o profissional é só um despachante idiotizado (mas que acha que o
idiota é vocês) ou só mal preparado, que quer dizer mal intencionado, porque “a
ignorância é vizinha da maldade”, já alertava Renato Russo.
Pedir exames de sangue, de imagem ou qualquer outro, sem
exame clínico, sem informações, sem consideração, sem conversa, nunca (quase)
dá em nada ou dá e o profissional (ridículo) nunca (quase) vai saber
interpretar. E tudo continua como está e você (no caso o meu amigo) continuará
com a dor nos ombros e na consciência e pensando em procurar uma benzedeira.
Será que não tem um outro jeito, mesmo com profissionais
tão ridículo, parece perfeitamente possível fazer apenas uma consulta e não
duas, como neste caso (quer dizer, não foi nem uma de fato) e então agendar
todos os exames no mesmo serviço, afinal de contas já existe internet e o
sistema pode ser acessado de qualquer lugar, não deveria ser necessário voltar
ao bairro ou fazem isso para você desistir?
Claro que deve ter algum profissional que deseja fazer
diferente, eu não conheço nenhum (quase), a não ser os de minha bolha pessoal.
Quer dizer, conheci a pediatra que cuidou de Alice, mas acho que ela não poderá
ajudar a resolver meu problema, quer dizer, o problema do meu amigo.
Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro,
doutorando em saúde pública e pai de Heloisa, Beatriz e Alice
e escreve para o Rua Balsa das 10 às Sextas-feiras.