12 fevereiro 2024

CADA DIA MAIS

 

 

Foto de Edna Rocha

CADA DIA MAIS

 

Bateu uma insegurança, uma sensação de malfeito, mesmo uma culpa de não ser bom o suficiente, de dar muito menos do que sempre recebeu. Comentou com amigos que sentia este desconforto moral, psicológico, espiritual, que achava que não amava os homens como devia, que se retraía muitas vezes diante da penúria. Buscava ampliar suas ações de ajuda, não negava doações pedidas em nome de boas causas, de mitigar fome, de tratamentos especiais, dava um dia de voluntariado num orfanato cozinhando e lavando chão e banheiros. Fazia compras para cozinhas que alimentavam população em situação de rua. Tinha uma ex-namorada que era Assistente Social de um mega projeto que tinha parceria com a Prefeitura e que vivia solicitando seus préstimos, mas a cada vez se sentia mais confuso e angustiado. Eram muitos os “assistidos”, e os rostos eram recorrentes nas filas de ajuda. Nunca parecia haver solução! Tudo muito paliativo, famílias na rua sem emprego, sem teto, sem educação. Gravidezes sem acompanhamento, muitas vezes com doenças  maternas evitáveis, outras com uso de entorpecentes que ajudavam a mudar a visão do mundo cruel onde estes seres humanos sobreviviam.

 Já não era criança e sua aposentadoria não era muita, pagava suas contas e guardava um pouco num sonho de uma viagem num futuro não muito distante. Sem filhos e agora viúvo, tinha na ex-namorada uma amiga mas o convívio não amainava as dores da sua alma. Ela tinha seu emprego no projeto, lidava com os problemas durante o trabalho e vivia com a família cheia de vigor e alegria. Ele se sentia definhar de compaixão, de culpa e medo do que poderia ser o seu mundo com tanta desigualdade. Queria sanar estas dores, mas só se fosse onipotente, e se sabia limitado. Mas até seus defeitos (que todos têm, se dizia) eram mais pesados pela sua impossibilidade de ser melhor.

 Sob orientação resolveu fazer terapia mas o que gastava nas consultas pesava mais por não estar revestido e investimento no outro. Até que um dia levou isto na consulta e foi agraciado com um comentário confortador: “Se você estiver mais feliz, mais dono de si, mais seguro, isto libertará seu coração para um trabalho melhor com o próximo” . não foi totalmente curativo, mas deixou a culpa do gasto consigo de lado. E... salvou a poupança da viagem que um dia faria.

 E por 3 vezes na semana continuou se dedicando ao trabalho voluntário, colocando o seu fazer na medida do seu poder fazer. E conseguiu seus momentos de gratidão pelo que tinha, sem culpa, e de felicidade sem cobrança. Claro que sabia que recaídas acontecem, mas a ajuda viria.

                                                                                                          Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

Escreve às segundas-feiras

10 fevereiro 2024

O DIÁLOGO

 

 

Imagem capturada pelo google.


Entrando no supermercado, logo na porta, uma senhora com uma criança no colo estendeu a mão e pediu ajuda. Do meu lado um senhor olhou com desprezo e logo depois fez o seguinte comentário, virando o pescoço e claramente falando comigo.

— Trabalhar essa gente não quer, não acha?

— O senhor tem emprego para dar a ela?

Foi exatamente o que perguntei. O homem, sem esperar a minha reação, simplesmente disse:

— Não.

Mesmo assim, tentou argumentar, mas eu, que não gosto de dar confiança para estranhos, já fui logo cortando:

— Se o senhor não tem como dar emprego a ela, não quero ouvir sua opinião, guarde para si mesmo.

E segui meu caminho.

 

[Ernande Valentin do Prado escreve no Rua Balsa das 10 às 6ª Feiras]

05 fevereiro 2024

MAS CHEGOU O CARNAVAL E...

 

 


MAS CHEGOU O CARNAVAL E...

 

Muita animação para pouca festa, era o pensamento da hora... ao redor o povo pensando em Blocos, fantasia e marchinhas. Decorando Sambas e Enredos, sambando no pé, na perna e na cabeça. O trabalho parecia nem render, muitas pausas e conversas animadas. Cadê  as reclamações da vida?

 Reconhecia a folia, a arte e os adereços criativos, mas se era tanta a tristeza das guerras e brigas, das roubalheiras, corrupção, doenças... para que tanta animação? Ia tudo voltar aos infelizes conformes de antes...

Estava encasquetada com esta perspectiva um tanto derrotista quando escutou a conversa da passageira do banco ao lado ao telefone na volta do trabalho. Queria ouvir a outra parte da conversa, mas não conseguia entender o ruído. Argumentos inicialmente tranquilos que foram se animando e fecharam a conversa quase eufóricos, risonhos e “saltitantes”.

Gravou a última frase e não parou de pensar até dormir. Não é que fosse contra carnaval, que não gostasse de sambar, de rir e de brincar. Fantasias engraçadas sempre animam a gente, né? Mas talvez o tanto de informação de violência fosse um neutralizador deste espírito de alegria. A frase escutada no final do dia remexeu as sensações, ideias e o sangue. Tinha uma força que derrubava seu olhar pessimista e desanimado. Falava de uma rebeldia da alegria, a máxima contravenção num momento e num sistema doentio, a resiliência do belo, do conjunto, da igualdade dos blocos, do pulsar comandado pela percussão, do voar promovido pelos sopros e do viver aqui e agora.

Remoeu, remoeu, remoeu e se rendeu!!!

 

                                                                                                          Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

Escreve às segundas-feiras

29 janeiro 2024

NO MAR?

 



NO MAR?

No início era mais uma conversa dentro mesmo. “Mar não tem cabelo”, “correntes de retorno”, “ondas violentas”, “puxa para o fundo mesmo”, “rodamoinhos” e o medo viajando entre as falas, borbulhando numa água inexistente externamente.

Passou a ser um desafio, enfrentar uma ondinha que fosse, poder ser “de coragem”. Buscou pisar na areia e ir até a arrebentação sem chorar, sem tremer. Precisou confiar na guia desta jornada. A professora deu apoio físico com o material de segurança, deu a mão, deu dicas, acompanhou de pertinho. Venceu a barreira do entrar até onde não dá pé!

Então veio o exercício, vieram as braçadas, o bater as pernas e pés com a cabeça dentro da água. Conseguiu entrar no ritmo da respiração junto com os movimentos, coordenar nado, respiração e deslocamento e ir acompanhando outros nadadores no grupo. Começou a se sentir firme, a segurança se fez evidente, a satisfação de superar as dificuldades e o medo aumentando aos poucos, já usava o apoio da boia fora do corpo, mais como apoio mesmo e não “muleta”.

Nova fase a experiência de nado no mar, prazer! Saber que mesmo com correnteza, com ondas e com água fria era capaz de sair com o grupo e ter a professora para orientar, mas de forma livre, leve e atenta, desfrutando do bem-estar de estar na imensidão das águas abertas, usando este estado de estar “entregue” e ao mesmo tempo acolhido ... uma oração.

                                                                                                          Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

Escreve às segundas-feiras

22 janeiro 2024

O NOVO PORTEIRO



 

 

O NOVO PORTEIRO

Com certeza esta contratação não estava prevista. A ideia de ter vigilância no portão da garagem nunca passou pela cabeça de nenhum morador ou vizinho. Até a chave de casa ficava num prego conhecido por todos. Porteiro para qual tarefa? Avisar quando ao gatos invadissem o jardim? Negociar com o gambá ou o porco espinho a circulação durante a noite?

A ideia de ter uma casa aberta aos lagartos, gambás, e até aos micos devoradores de pássaros e ovos dos ninhos, imperava na família. Os humanos eram benvindos também, embora já não circulassem tantos pela casa. Entregadores de verduras orgânicas, já eram familiarizados com a trava do portão e entravam com as mercadorias deixando na porta da entrada. Qual o motivo de ter um porteiro?

Na verdade, foi ele quem se ofereceu, sem pedir salário, sem incomodar ninguém. E a casa apreciou sua presença subindo e descendo pela parede do lado do portão, silencioso e discreto. Vamos ver quanto tempo ele mantém o contrato.

                                                                                                          Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

Escreve à
s segundas-feiras

15 janeiro 2024

PONTA CABEÇA

 

 



PONTA CABEÇA

Uma dor intensa provocou a abertura dos olhos. Demorou um pouco a se localizar e demorou mais um pouco parasse aperceber do entorno, do que havia.

Primeiro abriu e fechou a mão esquerda e a outra, mexiam. Tentou com os pés e percebeu que doíam as costas ao mobilizar. Não viu ninguém por perto, resolveu ir se aprumando sem ajuda e com calma. Mas as costas incomodavam muito. Lembrou de virar de lado para tentar levantar. Lentamente foi se assumindo até se sentar no meio da calçada! Encostou num muro e ficou matutando como estava ali... Pelo visto estava caído no chão, de costas numa calçada irregular e num local sem movimento. Ninguém pra socorrer, ninguém por perto. Ficou de pé com cuidado encasquetado com o que poderia ter acontecido. A cabeça tinha um enorme galo e as costas doíam aos mínimos movimentos, foi reconstituindo os fatos do dia e lembrando o que tinha feito no dia. Café com calma na varanda, ida ao Campo de São Bento para uma olhada nas crianças e velhos que passeava, um regozijo sutil por estar aposentado e poder desfrutar destas pequenas beleza, um vaso de flores comprado... olhou ao redor e não viu nem as flores nem sua carteira e muito menos seu celular. Franziu o senho, teria sido abordado e assaltado? Estava sozinho na rua voltando para casa... lembrava de um latido bem perto de si e nem chegara a se virar para olhar. Hummmmm seria um tombo por um atropelamento por um cachorro? E as flores? E a carteira? E o Celular. Resolveu caminhar com cuidado na direção de casa. Ainda se sentia tonto mas ao menos nada estava quebrado. Levou uns 15 minutos para chegar na esquina onde encontrou sua carteira estraçalhada com os cartões de banco mastigados e o dinheiro intacto. Riu de si... atacado por trás por um monstrinho mastigador. Mais adiante as flores fora do vaso ainda tinham algumas partes inteiras, mas triste mesmo foi o celular novo, quebrado, mastigado e imprestável... na boca do meliante que o comia descaradamente deitado num canteiro da rua. Nem chegou a ter raiva, acabou achando graça de estar relativamente bem e poder contar a aventura de ter visto a rua de outro ângulo... Sempre há como aproveitar... e chegou em casa com um andar cambaleante e um sorriso que ninguém entendeu.

 

                                                                                                          Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

Escreve às segundas-feiras

08 janeiro 2024

CADA DIA MAIS

 

 


CADA DIA MAIS

Ano novo passou e janeiro já estava no meio, bom quase! Os amigos e parentes já haviam mandado seus votos, os que se hospedaram em casa estavam de malas prontas para irem para suas casas e restava reorganizar, limpar e fazer a revisão das coisas esquecidas. Aí que preguiça!!!

 Arregaçar mangas e ir à luta! Uma questão de sobrevivência para o resto do mês... do ano? Ter a casa minimamente arrumada facilita a vida (kkk) dizem, inclusive, que facilita a organização dos neurônios...

Passados dois dias de arrumação, mudança dos móveis de lugar (alguns voltando aos seus espaços de antes das festas de final de ano e outros sendo remanejado mesmo para mudança de ares), foram achados 7 pés de meia sendo que apenas 2 eram pares, dois lenços vermelhos, uma bermuda de tamanho médio que pode ser feminina ou não, e um pé de sapato masculino. Meditação, avaliação e se mantinha a dúvida sobre avisar, ou não, aos que partiram, que coisas foram deixadas para trás.

 Dois dias de conversas internas e um saco de lixo foi para o reciclável sem dó nem piedade. Ninguém reivindicou o material. Ah, o carregador de celular e o par de meias ficou como doação para a casa!

                                                                                                                  Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

Escreve às segundas-feiras

18 dezembro 2023

A TAL VACINA DE IDOSO

 

 


A TAL VACINA DE IDOSO

 

O bafafá no meio da reunião dos vizinhos estava em ebulição.  Iniciou com a notícia que a Madalena havia tido um derrame logo depois de tomar a vacina de idoso no posto. Um zunzunzum corria que era de Covid, mas poia ser mesmo de gripe e as vizinhas falavam ao mesmo tempo, umas dizendo que nuuuunca iam tomar vacina nenhum, outras que sempre tomaram e nada aconteceu, mas agora tudo estava mudado e o perigo... 

Enquanto o vozerio aumentava calou-se o violão, alguns desistiram de conversar e entraram em casa, e apenas as duas vizinhas mais idosas ficaram sentadas na praça se olhando. Resolveram ir ver como estava Madalena.

 Como já era noite, apenas ligaram para a filha dela para saber se precisava de algo e prometeram ir pela manhã ao hospital. Saíram cedo as duas com uma muda de roupa extra (nunca se sabe, né). Encontraram a filha da Madalena na porta do CTI com ares cansados e olhos vermelhos. Ela comentou que a sorte é que estava com a mãe no posto quando tudo aconteceu sem mais nem menos: tomou a vacina, saiu da sala e caiu no corredor.  Socorrida na hora estava medicada e acompanhada fazendo exames desde que entrou. Fez alguns de noite mesmo. A conversa com a enfermeira chefe a deixou mais calma pois o socorro foi imediato e isto ajuda a ter menos lesão.

 As amigas se colocaram disponíveis para ficarem de plantão enquanto a moça ia tomar um banho e comer algo em casa. Ela teve dúvidas mas acabou indo pra voltar logo.

 Enquanto sentadas na sala de espera conversavam e elucubravam se a vacina havia ou não desencadeado   o derrame, um médico perguntou sobre a filha da Madalena. Elas disseram que estavam ali para que ela pudesse ir em casa. Então o médico pediu para uma delas entrar pois Madalena estava acordada e queria ver alguém conhecido. Entrou uma e olhou a Madalena sorrindo de boca torta. –Rá! Ainda não foi desta vez, balbuciou meio enrolada.  Cadê minha filha? A vizinha com olhos úmidos sorriu e disse que havia “mandado” ela ir tomar um banho. As duas riram e se sentiram confortadas pois que nenhuma tinha realmente se perdido da outra. O médico e a enfermeira se aproximaram e comentaram para as duas. Ainda bem que tudo ocorreu dentro de uma unidade de saúde e o socorro foi imediato. Bendita vacina! Agora é seguir em frente e cuidar desta pressão alta, D. Madalena e aproveitar a vida que proteção a senhora tem!

 Um mês depois estavam Madalena e as duas amigas na pracinha conversando sobre pílulas, exercícios e caminhadas. Poucas sequelas permitiam que as 3 passeassem ao redor da praça e desfrutassem uma das outras e das plantas e pássaros. A vida ainda era uma dádiva.

                                                                                   Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

                                                                                   Escreve às segundas feiras

11 dezembro 2023

PREPARANDO

 

 




PREPARANDO

Começou um fuzuê na casa. Avó, agitada, mãe tentando dar conta das demandas, gente entrando e saindo sem parar.

Já havia um tempo que se falava em espera, chegada, renovação e outras coisas que as crianças intuíam serem boas, mas que eram idéias vagas, nem um pouco concretas e, portanto, ainda intangíveis para a pirralhada. Sabiam que alguma coisa importante se aproximava. As crianças percebiam toda a energia da expectativa que estava no ar. Os menores voltavam seus olhinhos para os adultos em busca de resposta, mas não perguntavam alto. As crianças maiores falavam mesmo que queriam saber o que estava acontecendo. Os adultos faziam cara de mistério e diziam que era uma surpresa. Como era época de preparativos para o Natal, imaginavam que seria  alguma coisa relacionada a esta festa ou ao Ano Novo que viria logo após no calendário da parede.

Preparação, expectativa, agitação geral e a aura de mistério...

A cada dia a tensão criada propositalmente pelos adultos aumentava, a casa estava numa espera  e num clima de boa expectativa.  Começaram a aparecer caixas embrulhadas e misteriosas, e um quarto foi fechado com elas dentro. A pirralhada escutava uns barulhos que vinha de  trás da porta quando o “vô” entrava sorrindo e trancava a porta. Ah mesmo sabendo que era inadequado todos tentavam espiar pelo buraco da fechadura, os grandinhos abaixavam-se outros apenas ficavam na ponta dos pés e os pequenos arrumaram uma maneira criativa e cooperativa: um deitava e o outro subia nas costas para espiar. Mal dava para perceber as costas do avô... frustrante...

 Quase Natal e a família com árvore, coroa com velas das cores do advento, presépio e até novena. Nada de surpresa, nada de novo, até que bem na noite do dia 24, os adultos permitiram que todos se reunissem para um jantar e anunciaram que era chegada a hora da surpresa. O sono dos menores se via nos olhos que queriam se fechar, mas a curiosidade era maior que tudo e tentaram manter a cabeça ereta, com leves quedas ocasionais.

 Todos à mesa e sobraram 2 lugares... ninguém falava nada até que a campainha tocou e o Vô levantou mais rápido que todos e foi abrir a porta. SURPRESA! Entrou tia Rita, a  caçula dos irmãos de braços dados com um homem alto, muito diferente de tudo o que as crianças já haviam visto. Usava um vestido enorme de cores forte, um turbante na cabeça e tinha um imenso sorriso branco contrastando com sua pele negra. Como carvão. A tia Lena era preta, mas era de pele marrom e seus 3 filhos também era deste tom. O vô era moreno de cabelos branquinhos e usava um boné às vezes. Os 2 tios eram mais claros pois tinham puxado à avó (que jovem era ruiva de olhos verdes e cheia de sardas no corpo) que sorria e chorava ao mesmo tempo vendo a filha entrando feliz.

 Um alvoroço. Algumas das crianças não se lembrava da tia “ao vivo”, só nos vídeos ocasionais. Ela morava muito longe, num lugar que eles não sabiam dizer o nome.  Ver a tia deu uma imensa emoção e despertou de vez os pequenos. O homem alto falou num português esquisito que desejava a todos um feliz natal. Algumas das crianças riram do sotaque, e os adultos apreciaram o esforço do cunhado.

Bolsas, malas, presentes e foi preciso a vó chamar alto para comerem antes que esfriasse tudo.  Rita e Isac lavaram rapidamente as mãos e retiraram os casacos para sentarem... Aí sim foi a SURPRESA verdadeira para todas as crianças a barriga da tia estava enorme!!!

E chegou bem na hora de celebrarem a renovação, a esperança e os laços familiares. Mal deu tempo de acabarem de jantar e a chegada prenunciada se manifestou. As crianças maiores já haviam visto outros nascerem e comentaram entre alegres e pesarosos: este só vai ter aniversário junto com Natal.. uma festa e um presente.

Os avós emocionados olhavam abraçados a saída rápida do casal que mal havia chegado e acariciavam as cabecinhas dos pequenos que já não conseguiam manter olhos abertos. Levaram as coisas do casal para o quarto fechado (nem chegaram e entrar e ver as novidades (uma cama grande com um bercinho acoplado) e foram ajudar a deitar os pequenos. Ainda bem que a casa ainda era a mesma dos tempos dos filhos solteiros, com quartos suficientes para abrigar crianças e adultos com certe privacidade. Pequenos com os pais e primos grande juntos numa farra constante.

 E dia 25 amanheceu com Frederico nascido com um tufo de cabelos negros caracolados e com olhinhos imensos e cinzas, curioso para ver o mundo. Quem poderia desejar Natal melhor?

                                                                                   Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

                                                                                   Escreve às segundas feiras

01 dezembro 2023

SOBRE O NOVEMBRO AZUL, A INTEGRALIDADE E OS SONHOS DESFEITOS

 




 

“Vivendo e não aprendendo
Eis o homem, este sou eu”

Edgar Scandurra

 

 

Todos os anos, no mês de novembro, os meios de comunicação, as associações de urologistas e até os serviços públicos de saúde, se unem para tentar convencer os homens a liberar o fiofó. Chamam isso de novembro azul (e é preciso que alguém diga, então vou dizer: isso de dar nomes de cores aos meses já saturou e tem mês com congestionamento de cores nas costas, ou seja, já deu, né?)

Olá, meu nome é Ernande e este é Cuidado, Saúde e Cidadania, o podcast da Série SUS.

Essa história que vou contar aconteceu com um amigo meu, juro, isso aconteceu com um amigo meu, não foi comigo.

Ele caiu numa dessas propagandas enganosas de novembro, não a da Black fraude, aquela em que o comércio vende tudo pela metade do dobro do preço, mas a propaganda enganosa do novembro azul.

Ele escutou no rádio a promessa de que tal serviço de saúde estava oferecendo consultas médicas para conversar sobre a saúde do homem. A Fake News ainda prometia que não se tratava de exame de próstata ou não só exame de próstata, que poderiam falar sobre outros problemas de saúde e já encaminhar tudo de uma vez, tá ligado?

E esse meu amigo, muito desconfiado, mas aos 53 anos e sentido que já não começava a urina com a rapidez de antes, que seu jato de urina estava mais para um teco-teco do que para um Concord, resolveu ir a essa consulta e, claro, não poderia deixar de ser, foi enganado.

Para piorar, quando ele chegou no tal serviço, só tinha ele aguardando, mas logo depois chegou uma equipe de jornalismo e meu amigo deu até entrevista ao vivo. Logo depois de falar na Globo, começaram a chegar uma multidão de homens (cinco) procurando a tal consulta com o Clínico Geral, a tal consulta de saúde do homem. Enfim, dizem que a TV está morrendo, mas ela ajudou meu amigo, com muita facilidade, a enganar outros cinco homens, que poderiam estar numa boa tomando uma gelada no bar e falando mal do Diniz e do Neymar ou do novo presidente da Argentina, aquele Bolsonaro priorado.

Meu amigo é da área de saúde e defende o SUS, mas tem dias que ele se pergunta:

— Será que não estamos só nos enganando e enganando o povo? Se bem que não teria saída melhor, afinal o ruim é melhor do que nada, não é mesmo?

A promessa do SUS era que o sistema seria organizado, que teria atenção regionalizado, racional, com universalidade e integralidade.

Olha que palavra bonita, integralidade, ou seja, o SUS prometia cuidados com profissionais que conseguiriam nos olhar como um todo, não apenas como peças enferrujadas, quebradas ou imprestáveis.

Já ele, esse meu amigo, já ficaria satisfeito se não fosse tratado como um idiota juramentado.

A verdade, e eu conheço bem esse meu amigo, é que ele é um romântico inveterado, um esperançado e acha que um dia a coisa vai dar certo, embora em seus 53 anos, não consiga se lembrar de dois exemplos de quando isso deu certo. Tá ligado? Ele é tipo o Edgar Scandurra, lembra, (guitarrista e compositor da banda Ira!) que nos seus 15 anos, disse:

 

“vivendo e não aprendendo,

eis o homem, este sou eu”

 

Ou melhor, esse é ele, ele e o meu amigo, esse otário. Eu só vou à benzedeira e no máximo faço consultas pelo youtube.

Os meus ombros doem, quer dizer, os ombros do meu amigo doem e já tem um tempo, mas como ele sabia que é quase impossível encontrar um terapeuta que consiga se importar ou ser profissional a ponto de investigar, fazer as perguntas certas e pedir os exames corretos e exatos (ou quase) e que poderiam confirmar os possíveis diagnósticos, fui enrolando, enrolando até não aguentar mais. Aí ficou fácil cair na fake News de consulta com clínico no novembro azul.

Mas a merda é ainda maior, porque ele pressentiu de cara que a coisa não ia dar certo e mesmo assim persistiu no erro. Quando o médico entrou no recinto, vários homens estavam reunidos, a maioria servidores do estabelecimento e a maioria, como não poderia deixar de ser, eram mulheres.

— Até aí, tudo bem, disse o frango na porta do forno.

Feito os discursos de boa vontade, meu amigo identificou o médico, usava um jaleco branco encardido, tinha uma cara de cansado e saco cheiro às nove da manhã. E meu amigo pensou:

— Isso não vai dar certo.

Mas a culpa é dele, poderia ter fugido, mas não fugiu, ficou lá insistindo no erro. Depois o médico estendeu a mão e ele pensou:

— Vai ver eu estou enganado, afinal de contas, qual o médico que estende a mão para o usuário?

Mas ao segurar na mão de gelatina, do cara, pensou, desanimado:

— Entendi.

Mesmo assim, aceitou a consulta. E foi só para confirmar:

— Que merda.

Estender a mão e nem apertar, foi a única coisa mais ou menos decente que o Dr. mão de gelatina fez. Depois foi ladeira abaixo. Só fez preencher uma ficha encaminhando meu amigo para um especialista. Ele ainda quis dizer que tinha diabetes e que seu ombro estava doendo, mas o Dr. cortou e disse para contar sobre a dor para o reumatologista. Nem para fazer o teste de glicose, que as Enfermeiras estavam realizando ao lado, ele orientou. E adivinha?

O Dr. mão de gelatina nem encaminhou meu amigo para o reumatologista e sim para o urologista, afinal é novembro azul, ele tem 53 anos e saúde do homem é prevenção de câncer de próstata e só, não é verdade?

Eu aposto que o Dr. mão de gelatina ainda pensou: paciente chato, exigente, que vá tomar no cu. E falou:

— Tchau.

Ou foda-se, ou:

— Próximo.

Anunciando que a consulta acabou, que quer dizer:

— Não insista que é só isso mesmo, otário!

Entre essa consulta (ridícula) e a próxima consulta (ridícula) com o especialista, meu amigo encontrou, bem por acaso, uma terapeuta holista praticante de TPO ou Método de Saúde Okada e ela, olhando meu amigo como um todo, usou suas poderosas mãos e fez sua dor sumir por quase 24 horas.

Ele deveria ter parado por aí, afinal estava ganhando, mas burrice não tem cura. Seguiu pensando que ao menos o urologista iria te ouvir, se não ouvir, ao menos lhe encaminharia para um reumatologista ou ortopedista ou um outro “ista” qualquer, mas... insistindo em ter fé em algo que só dá errado, ao menos com ele e de forma repetida), afinal a consulta foi agendada no Hospital Universitário, que dizem que é onde estão os melhores profissionais (e a coisa é tão feia, que realmente deve ser verdade).

A maioria dos profissionais de saúde não sabem ou não querem ver os ser humano como um todo. E nem acho que o problema seja só a altíssima especialização a qual são submissos e submetidos voluntariamente ou não, não importa. Quase sempre a regra é atender mal, gastar o menor tempo possível e empurrar com a barriga e gritar:

— Próximo.

E Foda-se se a sua dor, seu mal estar, o problema é seu, que pague uma nova consulta com um novo profissional (que também será tão ruim quanto este). A lei é de oferta e da demanda e se todos são ruins, então todos estão com a clientela garantida.

— Não tá satisfeito, vá ao Procon, que não vai resolver nada também.

Fode-se você e, aproveitando a oportunidade, vai tomar no seu cu que eu vou tomar whisky ou Campari, mais tarde.

— Foda-se a integralidade.

Então, a coisa é mais ou menos assim:

Parece que o sistema é feito para não funcionar e isso desde a porta até o atendimento final, afinal de contas o porteiro do Hospital Universitário, que é o melhor dos melhores, precisou chamar um colega (trabalho colaborativo – coisa bonita) para melhor confundir o meu amigo nos caminhos do hospital. Se não fossem pacientes fiéis que já conhecem o labirinto do HU, talvez ele estivesse lá até hoje, perdido, morto de fome ou devorado pelo Minotauro.

Resumo da saga:

Você vai ao seu bairro, enfrenta a fila, porque ninguém no sistema sabe que dá para agendar consulta com dia e hora marcada. Aguarda até ser atendido pelo Dr. mão de gelatina, que apesar de ser formado em medicina (eu espero), receber salário pela função de médico (certamente ganhando mais do que merece), trabalha como despachante, preenchedor de cabeçalho de ficha (com aquela letra maldita).

Aí você aguarda duas semanas (até que foi pouco, perto de outras histórias que se ouve). E vai a consulta, acreditando (apesar de saber que é uma crença vã) que vai ser ouvido, que vai trocar uma ideia com um Dr. mais preparado e tal, afinal é um Dr. Médico, Professor da Universidade Pública). Encara o labirinto e senta na frente do especialista que gritou seu nome sem tirar a bunda da cadeira, que estava escrito na ficha feita pelo Dr. Mão de gelatina.

O especialista não te olha, não responde ao seu bom dia e nem te estende a mão.

— Foda-se,

afinal de contas ser simpático não é parte das regras ou é? Ele continua escrevendo na ficha, no tal do prontuário, mas escrevendo o que e para quê?

— Ele não perguntou nada e já escreveu o que meu amigo tem, o que meu amigo precisaria fazer, qual procedimento adotar?

Claro, nessa hora meu amigo já tinha perdido a fé completamente e estava se sentido um perfeito otário. Que ele é mesmo, mas não só ele, todos nós somos.

Mesmo assim tentou dialogar, mas suas opiniões não importavam, eram idiotas demais, afinal de conta já estava tudo anotado antes e não tinha mais espaços para dúvidas ou para outras possibilidades e, também, o especialista ganha como médico, mas é só mais um despachante das instituições que vão fazer os exames que ele não vai saber ler, se é que vai ler. Sem falar que pode até ter uma participação nos lucros, vá saber.

Nesta brincadeira, meu amigo perdeu 15 dias, algumas horas e a esperança, só andando de um lado para o outro sem fazer absolutamente nada que importasse para resolver seu problema de saúde e ainda terá que voltar ao seu bairro e tentar agendar os exames, sabe-se Deus para quando.

O sistema atual faz seus operadores, seus atores principais (com ou sem méritos) parecerem burros ou mal intencionados e constantemente as duas coisas. Vai-se em uma consulta com o clínico, que não te ouve e te encaminha para um especialista que também não te ouve e pede uma dúzia e meia de exames para se livrar bem rápido de sua presença incomoda. Aí você volta ao local onde o clínico te encaminhou para o especialista e, se tiver sorte, agendar os exames. E algum dia, vai fazer o exame e só então volta ao especialista, que diz, passando os olhos pelos dados impressos a laser em uma folha em branco, diz:

— Não deu nada.

E na ignorância ou na má vontade (má fé) do especialista, ele faz de conta que você mentiu para ele, que não sente nada e que ele fez tudo certo, tudo que poderia fazer. Mas exames não dão nada, nunca dão nada, se o profissional é só um despachante idiotizado (mas que acha que o idiota é vocês) ou só mal preparado, que quer dizer mal intencionado, porque “a ignorância é vizinha da maldade”, já alertava Renato Russo.

Pedir exames de sangue, de imagem ou qualquer outro, sem exame clínico, sem informações, sem consideração, sem conversa, nunca (quase) dá em nada ou dá e o profissional (ridículo) nunca (quase) vai saber interpretar. E tudo continua como está e você (no caso o meu amigo) continuará com a dor nos ombros e na consciência e pensando em procurar uma benzedeira.

Será que não tem um outro jeito, mesmo com profissionais tão ridículo, parece perfeitamente possível fazer apenas uma consulta e não duas, como neste caso (quer dizer, não foi nem uma de fato) e então agendar todos os exames no mesmo serviço, afinal de contas já existe internet e o sistema pode ser acessado de qualquer lugar, não deveria ser necessário voltar ao bairro ou fazem isso para você desistir?

Claro que deve ter algum profissional que deseja fazer diferente, eu não conheço nenhum (quase), a não ser os de minha bolha pessoal. Quer dizer, conheci a pediatra que cuidou de Alice, mas acho que ela não poderá ajudar a resolver meu problema, quer dizer, o problema do meu amigo.

 

Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro,

doutorando em saúde pública e pai de Heloisa, Beatriz e Alice

e escreve para o Rua Balsa das 10 às Sextas-feiras.

27 novembro 2023

PELA ESTRADA AFORA


 

PELA ESTRADA AFORA

Bom, na verdade nem era uma estrada, era mesmo uma trilha. A idéia era fazer um pouco de exercício e apreciar a mata, os córregos e uma cascatinha bucólica. Mas no meio do caminho caiu uma chuva fininha. Alguns voltaram para evitarem molhar a cabeça, outros não quiseram molhar as costas. E uns poucos seguiram apreciando o contato com a natureza. Pequenas flores, cogumelos, folhas de formas diferentes, cipós grossos, troncos caídos, muitas vozes de bichos, a maioria pássaros. E isto até calou os caminhantes que ficaram apreciando a pequena imersão na natureza. Oasis de energia fora do caos do transito da cidade. Paz que se deseja para si e para o mundo, momentos de uma espécie de oração, tamanha sintonia com a criação.

 Difícil foi retornar para o convívio com os que não foram e resmungavam pela “demora” dos caminhantes...  que consideraram  pouquíssimo o tempo de trilha! Mas a calma que havia se instalado acabou acomodando os corações resmungões. Sintonia com a natureza, saúde e paz.

 

                                                                                                 Maria Lúcia Futuro Mühlbauer

                                                                                                                  Escreve às segundas feiras

24 novembro 2023

AOS CAÍDOS NAS CAMPANHAS DE CONQUISTA

 

?. Imagem capturada na internet.



Ei

Meu amigo

Ultimamente não te reconheço mais

 

O que te aconteceu

No caminho que te trouxe até aqui?

 

Suas atitudes

Com a vida

Com as pessoas a sua volta

Com as nossas memórias...

 

Não…

Não te reconheço mais

 

Sei que “o tempo não pára”

Que a vida vai acontecendo

Até sem a gente perceber

Ou querer

 

Vamos, sei bem,

Nos tornando outros

Traímos nossos sonhos

Nossas esperanças

Nossas promessas

Nossas memórias

 

Meu amigo

De verdade

Sei que ainda está aí

 

Apesar de confundir verdades

Com vontades

Liberdade com opressão

 

Assim como eu estou aqui

Na medida do possível

Tentando entender tudo isso

 

De algum jeito

Ainda está aí dentro de você

O meu companheiro

 

Muito embora

Eu precise te dizer

Não te reconheço mais

 

Meu amigo

Ainda estou aqui

Se quiser se reencontrar

 

Com a vida

Com os seus sonhos

Com as nossas memórias

 

É só voltar

Estou aqui onde sempre estive

Esperando e acreditando “que o dia de amar é hoje”


Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro,

doutorando em saúde pública e pai de Heloisa, Beatriz e Alice

e escreve para o Rua Balsa das 10 às Sextas-feiras.


17 novembro 2023

TUDO SE PERDERÁ COMO LÁGRIMAS NA CHUVA

Lágrimas na chuva. Imagem capturada na internet.



Toda a caminhada humana

Da caverna à viagem espacial

Da descoberta do fogo, ferro e prata

Da invenção da roda, da escrita, da eletricidade

 

A peste negra e a inquisição

A penicilina e a vacina

Tudo que existe e existirá

 

Poeira vai virar

Quando apenas um milhão de anos se passar

Só um milhão de anos

Se a nossa história amanhã acabar

 

A grandiosidade arquitetônica da Grécia

Toda a pintura renascentista de Roma

As esculturas de Aleijadinho

O Cristo redentor e a torre Eiffel

 

A miséria e a fome da maioria

A ostentação e o luxo de uns

A revolução francesa e a inconfidência mineira

 

Poeira vai virar

Quando apenas um milhão de anos se passar

Só um milhão de anos

Se a nossa história amanhã acabar

 

A obra de Guimarães Rosa

Graciliano Ramos e Dostoievski

Glauber Rocha e Sergio Leone

 

Todos os versículos da bíblia

Todas as páginas do alcorão e da Torá

Tudo que foi escrito, gravado e esculpido

 

Poeira vai virar

Quando apenas um milhão de anos se passar

Só um milhão de anos

Se a nossa história amanhã acabar

 

A resiliência, a exuberância e a força da natureza

Toda a nossa história vai apagar

 

Tudo que foi pensado

Tudo que foi falado

Tudo que foi cantado

 

Poeira vai virar

Quando apenas um milhão de anos se passar

Só um milhão de anos

Se a nossa história amanhã acabar

 

O que o ser humano foi

É e poderia ser

A natureza pode apagar

Se amanhã a nossa história acabar

 

Nada sobrará

Um livro nunca lido

Uma história nunca escrita

 

Que não fará falta

As criaturas que merecer a terra herdar

Quando apenas um milhão de anos se passar

Só um milhão de anos


Ernande Valentim do Prado é Enfermeiro,

doutorando em saúde pública e pai de Heloisa, Beatriz e Alice

e escreve para o Rua Balsa das 10 às Sextas-feiras.


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